Travessia, Milton Nascimento, O ARRANJO #32 (English Subtitles)
Belo Horizonte, 1967: Fernando Brant tinha acabado de escrever a sua primeira letra de música na vida
Ele e o parceiro, Milton Nascimento, ficaram tão empolgados que tocaram a música umas vinte vezes
no violão da irmã do Fernando, um violão recém-comprado
A irmã apareceu com uma caneta e pediu pro Milton escrever o nome dele no tampo do violão
Ele reagiu, "não, Maria Célia, vai estragar o seu violão"
E ela respondeu: "Assina, porque vocês vão ter sucesso com essa música e eu quero o seu nome aí"
Mas faltava encontrar o nome pra música, e eles buscaram inspiração nos livros da casa
E encontraram o título da música na última palavra do romance Grande Sertão Veredas,
do escritor mineiro Guimarães Rosa: travessia
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo
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e assim contribuir para que eu continue a produzir os programas
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Travessia foi lançada no II Festival Internacional da Canção, de 1967, e conquistou o segundo lugar
Eumir Deodato era um jovem de 24 anos em 1967, mas já tinha um prestígio de veterano
Começou com 15 anos tocando no conjunto de Roberto Menescal, e aos 21 lançou o seu primeiro disco com direito a texto de Tom Jobim na contracapa
Ele era um dos jurados e arranjadores do festival que lançou o nome do Milton Nascimento para o estrelato
Ele se prontificou a escrever os arranjos para as músicas do Milton, que, assustado com a possibilidade de cantar num ginásio para 15 mil pessoas,
onde aconteceria o festival, perguntou pro Eumir: "E quem vai cantar as minhas músicas?"
Eumir falou que só continuaria trabalhando nas músicas se Milton cantasse, se fosse outro ele não escreveria mais nenhuma nota, e Milton não teve escolha.
Eumir deu uma entrevista pro escritor Zuza Homem de Mello em que disse:
"Milton tem características de música clássica, procedimentos harmônicos e rítmicos que só encontro em partituras de músicas clássicas
Até hoje não consegui descobrir a origem do impulso rítmico que ele dá às suas músicas
É uma coisa totalmente nova , misteriosa, intrigante e desafiadora"
O arranjo de Travessia que eu vou analisar é o do primeiro disco do Milton, um arranjo de Luis Eça baseado no arranjo original de Eumir Deodato
UM POUCO DE HISTÓRIA
Lília morava com os pais e a irmã mais nova num sobrado na Rua Conde de Bonfim, na Tijuca, Rio de Janeiro, e tinha uma namorado, chamado Zino
A mãe dela, Augusta, fez do térreo da casa um pequeno restaurante, que só abria para almoço,
e contava com a ajuda de uma cozinheira mineira que estava há pouco tempo no Rio, Maria do Carmo do Nascimento
Maria do Carmo engravidou, e quando o menino nasceu, passou a levá-lo todos os dias para a casa onde trabalhava,
e o garoto ficava quase sempre na companhia de Lília
O menino se chamava Milton, e como ele fazia umas manhas e ficava de bico, Lília o apelidou de Bituca
Quando Bituca tinha um ano a mãe começou a ficar doente, fraca, debilitada, com muita tosse: ela tava com tuberculose
O marido não aguentou a barra de cuidar da mulher doente e do filho pequeno e sumiu
Maria do Carmo pensou em voltar pra sua cidade, Juiz de Fora, mas foi acolhida pela família da casa onde já nem trabalhava, por falta de forças
Maria do Carmo não resistiu e morreu, quando Milton tinha pouco mais de dois anos
Augusta, mãe de Lília, achou que o certo e o justo era levar o menino para a casa da avó materna, em Juiz de Fora
A vida do menino se desmoronou por completo: ele tinha perdido todas as pessoas que ele amava,
e passava os dias sentado na calçada, na esperança que alguém fosse buscá-lo
Em poucos meses parou na porta da casa um carro com Zino e Lília, que saltou do carro correndo e pegou Milton no colo num abraço apertado
Muitos anos mais tarde, Milton fez um disco homenageando a sua mãe, Lília, e deu ao disco o nome de Pietá:
era essa a lembrança que ele tinha desse abraço, como se fosse Maria abraçando o seu filho crucificado
Lília e Zino tinham se casado e mudado para a cidade natal dele, Três Pontas
Apesar da felicidade com o casamento, Lília sentia muita falta do Milton, a quem ela tinha se dedicado por mais de dois anos
E de alguma forma ela sentia que o menino também não estava bem, e conversou com o marido para irem buscá-lo,
e ele não fez nenhuma objeção, até porque ele também tinha se afeiçoado ao garoto
Quem não se opôs também foi a avó do Milton, quando Lília explicou que iria criá-lo como um filho
"Ela chegou pra minha avó e perguntou: a senhora deixa eu adotar o Bituca?
Aí a minha avó falou assim: 'Olha, você ama ele, e ele ama você, então ele é seu'"
Era 1945, e a pequena Três Pontas era um tanto conservadora, e recebeu com preconceito o casal branco recém casado com um filho adotivo negro de quase 3 anos
Milton teve uma infância e uma juventude muito felizes em Três Pontas, apesar do racismo, que ele sofria algumas vezes
Não era permitida a entrada de negros no Clube de Três Pontas, e era onde se apresentavam os conjuntos que vinham de fora
Milton ficava sentado no banco da praça em frente, e seu amigo Wagner Tiso entrava e voltava com as informações: são tantos trompetes, tantos saxes e tal
Quando se formou no ginásio, com 16 anos, Milton, por ter sido o melhor aluno da turma, foi o orador e ganhou medalhas,
mas não pôde ir no baile de gala, ele seria barrado na porta do Clube
Com Wagner Tiso e outros amigos, Milton fundou o grupo Luar de Prata, e começou a sua vida de músico de bailes
Wagner Tiso foi estudar em Alfenas, numa cidade próxima, e lá fundou um conjunto de baile, com os amigos Waine, Wanderley, e Wesley, chamado de W's boys
Quando Wagner chamou o amigo Bituca para participar do grupo ele explicou que pra ser um dos crooners dos W's boys
ele precisava inverter a primeira letra do seu nome e se apresentar como Wilton Nascimento
Milton aceitou, pelo bem da música, mas ainda bem que voltou com o seu nome oficial assim que os W's boys se separaram
Com o fim do conjunto, Wagner e Milton comecam a tocar em alguns clubes de Belo Horizonte nos fins de semana,
até que Milton, então com 20 anos resolveu se mudar para a capital mineira
Milton se mudou pra uma pensão num apartamento do Edifício Levy, onde Wagner também se hospedava, na casa da irmã
O Edifício Levy é um dos primeiros prédios modernos de BH, tinha sido construído há muito pouco tempo quando Milton se mudou pra lá, em 1963
Nesse edifício Milton conheceu uma família numerosa que, com o tempo, praticamente o adotou como o décimo segundo filho
Era a casa de Salomão, o Seu Salim, e da Dona Maricota, a casa dos Borges, e alguns filhos do casal seriam parceiros do Milton
O primeiro foi o primogênito Marilton, da idade do Milton, com quem ele formou, junto com Wagner Tiso, o grupo Evolussamba
Depois vieram Marcio Borges, um pouco mais novo que o Milton, e Lô Borges, esse dez anos mais novo
Exatamente na noite do golpe militar, em 31 de março de 64 foi inaugurada uma nova casa de jazz em Belo Horizonte, Berimbau
"Um dia o Wagner chegou lá na minha pensão e falou, 'Bituca, hoje nós vamos tocar no Berimbau'
Eu falei: ô coisa boa, mas ele falou que eu tinha que tocar contrabaixo
Aí eu falei, Wagner, você está louco, eu nunca nem encostei num contrabaixo, eu não sei como toca aquilo"
E assim foi formado o Berimbau Trio, com os dois e mais o baterista Paulo Braga
Numa dessas noites no Berimbau, no intervalo entre um set e outro, Milton ficou conversando com Marcio Borges,
com quem ele nunca tinha trocado mais do que cumprimentos básicos
Marcio estava já um pouco alto, e falou: os seus arranjos são excelentes, às vezes melhores do que as músicas originais, você precisa compor
Milton se surpreendeu com a veemência do Marcio, com certeza amplificada pelo efeito do álcool,
e disse que não, ele não iria compor, que ele era um intérprete, era o que ele queria ser
Mas isso ficou na cabeça dele: compor
Foi com Marcio que Milton entrou no cine Tupi, às duas da tarde, para assistir a Jules et Jim, de François Truffaut,
que o amigo, então aspirante a diretor de cinema, já tinha visto e indicado
"Aí entramos os dois na sessão das duas e saímos as dez da noite
Quando a gente saiu eu cheguei pra ele e falei: na sua casa tem violão, tem caderno e tem caneta, nós vamos pra lá agora, começar a compor"
Segundo Marcio Borges escreveu no seu livro, Os sonhos não envelhecem, "Bituca deixou-se levar - e me levou consigo -
para muito, muito longe, para uma região de melodias intrincadas e misteriosas, entoadas em puro improviso de cristalinos falsetes,
coisas que nem eu, nem ninguém, nem ele próprio, jamais escutáramos antes"
Nessa noite ele compuseram 3 músicas: Novena, Gira Girou e Crença
Nessa mesma época, Milton escreveu uma letra segundo ele inspirada nas salinas de Cabo Frio, que ele tinha visitado quando criança
Ele tinha acabado de ler um livro sobre as canções de trabalho dos negros de Mississipi e as duas histórias se fundiram
Escreveu uma letra que lhe pareceu uma canção de trabalho, e colocou o nome de Canção do Sal
Ele escreveu uma melodia simples, só pra marcar o balanço da música, mas prometeu a si mesmo melhorar a melodia depois
Um dos grandes incentivadores do Milton no começo da sua vida profissional foi Pacífico Mascarenhas,
compositor de Belo Horizonte que tinha projeção nacional, era o quinhão mineiro na bossa nova
Pacífico convidou Milton e Wagner Tiso pra participarem da gravação do seu disco na Odeon, no Rio de Janeiro
Lá, em uma festa, depois de um dia de gravação, Milton reparou em uma menina baixinha, e a reconheceu da capa de um disco:
era Elis Regina, que tinha recém chegado de Porto Alegre, e era desconhecida ainda
Esse disco, Viva a Brotolândia, era uma tentiva de fazer Elis virar uma nova Celly Campelo, o que obviamente não deu certo
Nessa festa, incentivados por Patrício Mascarenhas, Milton e Wagner tocaram uma música dos dois, Aconteceu
Quando terminou a festa, saíram todos andando pelas ruas de Copacabana
e Milton chegou perto da Elis e cantarolou um trecho de "Dá sorte", uma das músicas do disco dela
Elis ficou furiosa, ela tava tentando apagar esse disco da sua vida, e, como ela não era fácil, ela falou "Cala a boca, nem toca nesse negócio"
A gravação no disco de Pacífico Mascarenhas foi ouvida pelo grande compositor Baden Powell,
que escolheu aquela voz para interpretar a sua composição Cidade Vazia, em parceria com Lula Freire, no II Festival da Excelsior, em 1966
Milton foi pra São Paulo, na época, era a cidade que concentrava a nova música brasileira, especialmente pelos programas musicais da TV Record
Milton participou da primeira eliminatória do festival, em Porto Alegre, e classificou a música para a final, em São Paulo
A música ganhou o quarto lugar, e quem iria entregar os prêmios era a vencedora do festival anterior, Elis Regina
Só tinham se passado dois anos desde que Milton e Elis se encontraram no Rio, mas agora ela já era uma estrela da música brasileira
Milton cruzou com ela na coxia do teatro e teve a certeza de que ela não o reconheceria, e, tímido, baixou o rosto ao cruzar com ela
" Aí eu, né, baixei a cabeça assim, pra mim eu tava cumprimentando a rainha, mas...
Eu sei que ela passou e de repente eu ouvi um barulho de tamanco, pá
Aí falei, meu Deus... 'Escuta, mineiro não tem educação não?'
Aí eu falei, não Elis, o negócio é o seguinte, é porque fica todo mundo dando em cima de você e eu não queria ser mais um
Ela falou 'não, mas isso não tem explicação, tem que cumprimentar as pessoas
E eu quero que você vá na minha casa pra você cantar aquela música que você cantou pra gente lá no Rio, você e o Wagner'
Eu falei, mas você se lembra disso? Ela começou a cantar a música e falou assim: 'memória, meu caro!'
E aí começou a nossa história"
Milton foi à casa da Elis dias depois, e chegando lá ele encontrou Gilberto Gil, que Elis tinha chamado pra que o baiano conhecesse o mineiro
Gil tinha visto Milton cantar no festival, e disse pro seu amigo Caetano Veloso que Milton era a coisa mais maravilhosa da música brasileira naquele momento
Milton começou a tocar as suas músicas
"Foi duro, eu cantei umas 28 músicas, nenhuma servia"
"Que nada, na terceira já tava"
"28 músicas no mínimo!"
"Não senhor, que isso, você cantou umas 3 ou 4"
"Teve uma hora que eu cansei e ela perguntou, não tem mais nenhuma?
Tinha, era a Canção do Sal, que Milton considerava ainda um rascunho de melodia, mas resolveu cantar, e Elis falou: "É essa que eu vou gravar"
Ser gravado pela maior cantora da música brasileira naquele momento era um feito e tanto pra um jovem compositor desconhecido
Mas na prática a vida de Milton estava muito difícil: desde que saiu de casa ele nunca pediu dinheiro para os pais,
que tinham condições de ajudá-lo, ele achava que tinha que se virar por conta própria, era uma questão de honra
Mas começou a ficar com dificuldades de se manter, e com isso ficou deprimido,
e passou a tocar menos, e trabalhar menos significava ter menos dinheiro ainda
Depois de praticamente uma semana sem comer começou a ter náuseas, calafrios, a enxergar mal
Pediu ajuda aos amigos pra comprar uma passagem pra Três Pontas, e chegando lá a situação física dele quase matou os seus pais de susto
Estava muito debilitado, e os pais insistiram pra que ele contasse o que estava acontecendo, mas ele nunca disse a verdade: tava passando fome
Depois da temporada revigorante em Três Pontas, Milton voltou pra São Paulo e as coisas começaram a andar:
ele conseguiu mais trabalhos na noite e enquanto isso ia colecionando músicos que admiravam o seu trabalho
Um desse músicos foi o cantor Agostinho dos Santos
Agostinho estava no auge da sua carreira, tinha cantado no filme Orfeu do Carnaval,
que tinha ganhado a Palma de ouro em Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
Em uma noite Milton cantava em um bar quando notou, na penumbra, que alguém tinha se levantado da mesa e se sentado bem próximo a ele
"Eu tô tocando, tocando, e uma hora eu vejo assim: 'Bicho!', foi a primeira vez que eu vi uma pessoa chamar o outro de bicho, 'quem é você?'
Aí eu olhei e vi que era o Agostinho dos Santos, o coração ficou assim, eu era super fã dele"
Agostinho disse: "Você compõe? Toca uma música sua!"
Milton cantou Morro Velho, e Agostinho caiu pra trás, e quis que o Milton inscrevesse a música no Festival Internacional da Canção, o FIC, no Rio
Milton tinha ficado muito decepcionado com o clima de competição que ele viu no festival em que ele participou
e tinha prometido nunca mais participar de festivais, e disse que não ia se inscrever
Tempos depois, Agostinho apareceu na pensão onde morava Milton com uma novidade:
iria gravar um disco novo e precisava que o Milton gravasse 3 músicas dele para o produtor do disco escolher uma pra entrar
Milton achou estranho isso de gravar três músicas pra escolherem uma, mas gravou as três escolhidas por Agostinho:
Morro Velho, Maria Minha Fé e Travessia
Semanas depois, Milton estava no Teatro Record quando Elis veio abraçá-lo num pulo, eufórica:
"Eu sabia! Você emplacou 3 músicas no festival do Rio!"
Milton respondeu, mas eu não botei música nesse festival! E Elis: "então tem outro Milton Nascimento"
Ele entendeu quando ouviu a risada do amigo Agostinho dos Santos, que assistia a cena ali por perto
Milton tinha simplesmente classificado as 3 músicas para o festival, um feito tão inacreditável que o próprio diretor do festival,
Augusto Marzagão, viajou até São Paulo só pra conhecer esse novo compositor, e o encontrou cantando em um bar
Marzagão falou que estavam todos esperando ele no Rio, mas Milton disse que não tinha dinheiro nem pra chegar no rodoviária,
e recebeu de Marzagão um dinheiro que serviria pra pagar a viagem e alguns dias de hotel
Milton chegou no prédio onde funcionava o escritório do festival com o violão e a mala pequena,
e perguntou para a secretária: Eu gostaria de falar com o Augusto Marzagão
A secretária olhou o rapaz e falou: "Ih, hoje vai ser difícil, estão todos em reunião"
"Tá bom, avisa por favor que o Milton Nascimento esteve aqui"
A moça falou: não vá embora, não! Ela já tinha ouvido esse nome centenas de vezes,
sabia que ele era muito esperado por todos, e ligou pra sala de reuniões avisando da presença dele
A descrição dessa cena eu ouvi do próprio Milton:
uma porta se abriu e umas 6 pessoas saíram ao mesmo tempo, umas sobre as outras
Dentre essas pessoas estavam os maestros e arranjadores Guerra Peixe, Geni Marcondes e Eumir Deodato,
que pediram que o Milton cantasse Morro Velho - muitos choraram, todos bateram palmas e pediram pra ele tocar de novo, e de novo
Mas a canção que fez mais sucesso no festival, que tirou o segundo lugar,
foi uma canção que ele compôs com um amigo de Belo Horizonte que nunca tinha escrito uma letra na vida:
era o estudante de direto Fernando Brant
Milton tinha feito a música em São Paulo e até escolhido o título, "O vendedor de sonhos"
Já tinha até o primeiro verso da música, "quem comprar o meu sonho"
"Aí eu fiquei pensando, não tem a cara de Marcinho, não tem a minha cara, eu vou entregar pro Fernando
Aí viajei pra Belo Horizonte falei com Fernando que falou: 'você tá louco! Eu não vou fazer letra nenhuma, eu nunca fiz
Aí eu voltei pra São Paulo, depois mais tarde voltei pra Belo Horizonte,
, a gente tava sentado num bar e ele tava com um papel na mão e eu perguntei: O que que é, Fernando, isso aí?
'Não, não é nada não"
Perguntei umas três vezes, até que uma hora me encheu o saco, e falei: Fernando, ou você me dá isso aí,
ou me mostra, me conta, ou você guarda, ou eu vou tomar isso de você e vou rasgar
Ele pegou e me deu, e saiu correndo pro banheiro"
Quando voltou Milton falou: cabe direitinho na música, vamos na sua casa ver como fica no violão; e o resto é história
1. MELODIA Travessia é uma música com uma melodia com uma grande extensão, uma oitava e mais uma sexta
E as duas partes da música são praticamente cantadas em regiões distintas
A primeira parte da música é cantada bem mais no grave, enquanto o refrão é no agudo,
o que ajuda a criar o efeito de ápice da canção quando chega o refrão
Especialmente pelo salto de sexta, do começo do refrão, que caracteriza a música "Solto a voz"
Mas o que impressiona mesmo é o requinte harmônico da música
Já o segundo acorde da música é muito surpreendente, por fugir completamente do centro tonal da música,
e isso com uma melodia diatônica, ou seja com as notas do próprio tom
A música poderia perfeitamente começar com uma harmonia tradicional,
e se pode tocar nesse trecho a progressão harmônica mais básica do tonalismo: tônica, subdominante, dominante, tônica
Tudo certo, mas o Milton surpreende com esse acorde
E também surpreende no fim da primeira parte:
ao invés de tocar a dominante tradicional, acorde maior com sétima, ele faz um acorde de dominante menor
O que dá uma outra cor
2. ORQUESTRAÇÃO Uma das marcas da música, quase que fazendo parte da composição, é a introdução de violão que o Milton criou
É uma melodia a 3 vozes no agudo, quase sempre tocando no tempo forte
E o baixo está quase sempre no contratempo, deslocando a nossa percepção do ritmo -
com certeza um dos impulsos rítmicos que intrigaram Eumir Deodato
Tirando o primeiro ataque, a tempo e na tônica do acorde, o baixo está sempre na mesma nota, o que é chamado de baixo pedal
O arranjo de Luiz Eça que eu vou analisar é baseado no arranjo original do Eumir, com muitas cordas e alguns sopros,
mas Eça usa o trompete com surdina, que não existia no arranjo original
3. A FORMA DO ARRANJO Travessia é uma canção em duas partes, A e B, sendo o B o refrão, e com duas letras diferentes na parte A
Nesse arranjo a música é apresentada na seguinte forma: introdução com 8 compassos, parte A, o intermezzo que é metade da introdução e a parte B
Depois um intermezzo que é uma quarto da introdução, só 2 compassos, e segue a segunda letra da parte A e vai para o refrão sem o intermezzo
Depois de novo o intermezzo de 2 compassos e repete o segundo A, sem seguir para o refrão, não repete o refrão para acabar, como seria de se esperar
E termina com a introdução de violão fazendo o papel de coda
Na introdução de violão o baixo, a nota mais grave, que está mais à esquerda,
está quase sempre na mesma nota, é o baixo pedal
Cama harmônica de cordas na região média pra grave
Frase do trompete com surdina
Intermezzo com o baixo pedal
Agora frase dos violinos na região aguda
E uma frase descendente dos violinos
Metais em acordes bem fechados, com notas muito próximas
Uma frase nas cordas graves
Pizzicato nas cordas graves, esse som curtinho, tocado com os dedos, não com o arco
Travessia é uma toada, não é bossa nova, mas é uma toada bem moderna
Agora o belo timbre de cordas em uníssono com o trompete com surdina
Os acordes nos metais são tão fechados que soam bem dissonantes
O trompete está fazendo a mesma frase dos violinos, mas uma oitava abaixo
Os metais de novo em acorde com dissonâncias
De novo o pizzicato, com cordas e trompete em uníssono com o violão
E de novo o trompete com surdina em uníssono com as cordas
Os metais tocando junto com o violão, com o trompete numa nota aguda parada
Cordas em movimento contrário e o acorde final no modo lídio
Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal, compartilha o vídeo
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"A Fernanda Montenegro um dia me disse: 'olha, eu vou ao sul do Brasil e me sinto num lugar relativamente estrangeiro
Eu vou a Salvador e me sinto num lugar bem estrangeiro, porque no sul do Brasil parece que eu fui para a europa,
na Bahia parece que eu fui para a África
Quando eu vou pra Minas eu sinto que eu vou pra dentro do Brasil"