Sabiá (Tom Jobim/Chico Buarque), O ARRANJO #44 (with English subtitles)
Em 1968, já consagrado no Brasil e no mundo, Tom Jobim conquistou o primeiro lugar
no III Festival Internacional da Canção, realizado no ginásio do maracanãzinho, no Rio de Janeiro
Quando subiu no palco para receber o prêmio levou uma vaia que durou 23 minutos, 23 minutos de vaia
É difícil imaginar a cena dele saindo sozinho do maracanãzinho, triste, dirigindo o seu fusca
Dentro do imenso túnel Rebouças ele chorou um pouquinho enquanto pensava: "que loucura"
É difícil hoje imaginar e acreditar que tudo isso tenha acontecido, mas aconteceu
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo
Se você está gostando de assistir aos episódios, pense na possibilidade de apoiar O ARRANJO
e assim contribuir para que eu continue a produzir os programas, a partir de apenas 10 reais
Acesse apoia.se/oarranjo ou se você mora fora do Brasil acesse patreon.com/oarranjo
Se preferir contribuir com pix, a chave é contato@flaviomendes.com
Sabiá, é uma composição de Tom Jobim e Chico Buarque, e foi a vencedora do III FIC, em 1968
Tom nunca quis participar de festivais, nunca gostou, nunca acreditou em competição de canções,
como ele mesmo disse depois desse festival, não se pode comparar um sabiá com um bem-te-vi
Aos 41 anos já era considerado o maior compositor popular brasileiro e tinha acabado de gravar um disco com o maior artista daqueles tempos, Frank Sinatra
Como homenagem, recebeu um convite para ser jurado desse festival de 68, convite que ele recusou por não se sentir confortável julgando os colegas
Para não ficar deselegante, ele mesmo sugeriu que poderia participar com uma canção
Ele tinha uma música inédita, chamada Gávea, uma modinha no estilo de Villa Lobos, que ele pretendia entregar para a cantora lírica Maria Lúcia Godoy
Segundo contou em entrevista ao jornalista João Luiz Albuquerque, Tom deu esse nome pra música porque ela
"obedece a uma linha muito Gávea, com muita umidade, avenca, pássaros que piam de tarde"
Os pássaros acabaram sendo representados pelo sábia, que deu o nome à música depois que ela recebeu a letra do Chico Buarque
Ele sabia que a música não era o que se chamava na época de "música de festival",
não tinha impacto, era uma música introspectiva, complexa, não era pra ganhar o festival
Estava tão confiante na derrota que apostou uma caixa de uísque com Vinicius de Moraes, apostou que não seria o vencedor, e teve que pagar a aposta
Para interpretar a música no festival, Chico sugeriu as irmãs Cynara e Cybele, que já tinham cantado a sua música Carolina no festival do ano anterior
O arranjo foi escrito por Eumir Deodato especialmente para o festival e gravado em estúdio pra ser lançado em um compacto, e é essa a versão que eu vou analisar nesse vídeo
UM POUCO DE HISTÓRIA
Para Zuenir Ventura, 1968 foi o ano que não terminou
Foi um ano intenso no mundo todo, um dos mais convulsivos do século XX, e um ano de ruptura no Brasil
com a decretação do Ai-5, o marco que inaugurou o período mais sombrio da ditadura militar
Depois do golpe de 1964 o movimento estudantil no Brasil foi dizimado,
mas em 68 ele estava se reorganizando, promovendo manifestações que eram brutalmente repelidas pela polícia
O FIC desse ano, festival promovido pela TV Globo, foi o mais agitado da Era dos Festivais, com alguns momentos violentos
Na eliminatória paulista aconteceu o famoso embate entre Caetano Veloso e a plateia de estdantes no TUCA, o Teatro da Universidade Católica
Caetano radicalizou o discurso tropicalista, e foi muito hostilizado pelo público, que reagiu com fúria, ódio mesmo
Vale dizer que neste festival tanto Caetano quando Gil estavam seguindo a célebre frase do poeta russo Vladimir Maiakóvski:
Sem forma revolucionária não há arte revolucionária
Mas a forma com que eles estavam radicalizando esse discurso, dobrando a aposta nas provocações ao público, provocou nesse uma reação muito violenta
Caetano retrucou com um discurso histórico, antológico
Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?
Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada
Vocês são iguais abem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores
Vocês não diferem em nada deles
Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos"
Quem também participou da eliminatória em São Paulo foi Geraldo Vandré, mas teve uma recepção oposta
Na canção "Pra Não Dizer que não Falei das Flores", ele cantava tudo o que aquela plateia queria ouvir e cantar junto
A música era muito simples, só com dois acordes
Aliás, o próprio Vandré dizia que em música popular o texto é que é o importante, a música está sempre a serviço da letra,
pra ele a música ser de fácil assimilação era importante para passar melhor a mensagem política
No meio de orquestrações grandiosas de um lado, guitarras distorcidas de outro, Vandré surgiu só de voz e violão, instrumento que ele sequer tocava bem
A cada apresentação nas eliminatórias a música ia ganhando um coro cada vez mais forte da plateia, era um hino de resistência ao regime militar, é a nossa marselhesa
A música já saiu de São Paulo como uma das favoritas para ganhar o festival, mas com toda a repercussão
a TV Globo foi avisada que os militares queriam que a música fosse eliminada
A Globo, com uma relação muito próxima com o governo, argumentou que desclassificar a música sem que tivesse previsão no regulamento
causaria uma celeuma muito grande na imprensa e a música seguiu no festival
Mas no dia da final, o ajudante de ordens do general comandante do 1o exército telefonou para o todo poderoso da TV Globo,
Walter Clark, e disse: o Vandré não pode ganhar o festival
Clark disse que seria impossível garantir, que o júri era soberano, mas ouviu de resposta que esse era um problema dele, que a ordem era clara
Clark e o produtor do festival, Augusto Marzagão, resolveram arriscar: não avisaram a ninguém, nem ao júri, da ordem recebida, eles pagaram pra ver
Os jurados davam notas de 1 a 10 para as músicas, e alguns jurados, com o tempo, revelaram as suas notas
O cartunista Ziraldo disse que deu 10 pra música do Vandré e 5 para todas as outras;
a atriz Bibi Ferreira só se lembrava que deu a maior nota pro Vandré;
mas o então diretor do Museu da Imagem e do Som, Ricardo Cravo Albim,
admite que tramou com outros membros do júri para que Sabiá vencesse, e o resultado foi 109 a 106 pra Sabiá
As classificações foram anunciadas em ordem decrescente,
e quando "Pra não dizer que não falei das flores" foi anunciada em segundo o maracanãzinho explodiu em vaias
Tinha ficado claro que Sabiá era a vencedora, e antes de canta a sua música Vandré fez um discurso, tentando acalmar o público de mais de vinte mil pessoas
"Eu acho uma coisa a mais: Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque merecem o nosso respeito
A nossa função é fazer canções; a função de julgar nesse instante é do júri que ali está"
Não existe o registro em vídeo da apresentação desse dia, só o áudio sobreviveu
"Quando vc se lembra do maracanazinho inteiro cantando Caminhando, que sentimento você tem?"
"Foi bonito, foi muito bonito. Pena que eu não possa ver o VT, tão guardando o VT não sei pra que, lá na sua estação eles devem ter o VT, procura lá. Consegue o VT aí pra mim"
O festival foi a glória para o artista Geraldo Vandré, mas virou um pesadelo
O secretário de segurança do estado da Guanabara, um general, foi aos jornais dizer que a música era altamente subversiva,
e, mesmo a música tendo a liberação da censura, mandou recolher os discos nas lojas,
num gesto sem respaldo legal - é assim nas ditaduras
Menos de um mês depois do festival, a execução da música foi enfim proibida em todo o território nacional, e Vandré se tornou oficialmente um inimigo do regime
Com a decretação do Ai-5, Vandré se escondeu e assim escapou da prisão:
o mesmo grupo que prendeu Caetano e Gil passou depois no apartamento do Vandré, mas ele não estava
Ele conseguiu sair do Brasil com um esquema do Partido Comunista, apesar de não ser filiado, e voltou em 1973, depois de um acordo com a ditadura
Nunca mais retomou a carreira artística, nunca mais cantou as suas músicas antigas, e chegou a afirmar que o Geraldo Vandré morreu
"Eu tô exilado até hoje, eu não voltei"
Quando foram anunciar as dez primeiras colocadas do festival, os compositores foram todos levados para trás do palco
O Chico não estava no Brasil, estava fazendo uma temporada na Itália, o Tom estava sozinho
Ele imaginava que iria ficar lá pelo quinto lugar, mas as músicas foram sendo anunciadas e nada de Sabiá
Quando anunciaram o segundo lugar pro Vandré, e a vaia explodiu, ele já pressentiu o que iria acontecer
Subiu no palco, recebeu aquela vaia interminável e saiu meio atônito do ginásio, acabou esquecendo a mulher e os filhos, que tiveram que voltar de táxi
No dia seguinte mandou um telegrama meio desesperado pro Chico: Venha urgente presença imprescindível temos que estar juntos preciso de você
"Quando eu recebi o telegrama eu achei que fosse brincadeira. Telefonei pro meu empresário na época e eu falei: e aí? Tenho uma notícia boa e uma ruim.
A notícia boa: a música ganhou o festival, a parte nacional, e a ruim, o maracanãzinho inteiro vaiou"
Era um festival internacional, essa fase era a parte nacional, que escolhia a concorrente brasileira pra entrar na fase internacional, que aconteceria uma semana depois
Chico voltou de viagem exatamente no domingo seguinte, no dia da final internacional,
e os dois compositores estavam juntos quando Sabiá ganhou também a parte internacional
Na verdade o que o Tom queria, mas não conseguiu fazer, era buscar o parceiro no aeroporto e recebê-lo com vaias,
segundo ele, era pra dar pro Chico a parte das vaias que lhe cabia
"Tonzinho, quando você encontrou o Chico hoje de manhã, ele foi na sua casa ou você foi no aeroporto?"
"Eu tava quase dormindo quando o Chiquinho chegou. Aí chegou Vinícius, chegou o Gaya, chegou todo mundo, foi tão bom.
Eu não durmo há 15 dias mas não tem a menor importância"
Essa disputa pelo primeiro lugar nesse festival colocou lado a lado duas correntes da música brasileira daquele momento
De um lado a canção revolucionária, "caminhando e cantando", fruto do projeto de arte popular desenvolvido pelo CPC da UNE, anunciando o levante popular iminente
De outro a estética modernista jobiniana da bossa nova, que parecia anacrônica naquele momento, desligada da realidade nacional
Apesar da vitória de Sabiá no festival, a impressão que ficou a princípio foi uma vitória da estética ideológica presente na música do Vandré, mas não foi isso o que aconteceu
Surgiram muitas críticas, do campo da esquerda, ao voluntarismo sugerido pela canção, como se bastasse querer, que a partir daí a revolução iria acontecer
E a repressão política pós Ai-5, o recrudescimento da censura, tudo isso contribuiu para o fim da chamada canção de protesto,
mas a música do Vandré continua nas ruas, cantada nas manifestações até hoje
E a canção vitoriosa, mas derrotada pela vaia, por mais que demonstrasse naquele momento estar desvinculada do momento histórico,
com o tempo se tornou mais um clássico da música brasileira
"Sabiá tem um significado muito forte pra mim por causa daquela história toda, daquela vaia horrorosa do maracanãzinho, que ele tomou sozinho.
Mandou um telegrama, Chico, venha por favor, e quando eu cheguei já tava resolvido o problema, não tinha mais a vaia.
E é uma música que mais tarde essa vaia toda vai ficando incompreensível, você vai escutando aquela música e a vaia vai desaparecendo" 1. MELODIA
Muito se fala hoje que Sabiá era uma canção política, por fazer uma relação com o poema Canção Do Exílio, de Gonçalves Dias, e os exilados pela ditadura
Mas a verdade é que, na época, o Chico artista não tinha atuação política,
numa comparação com Geraldo Vandré ele até poderia ser considerado um alienado, o que tava longe de ser verdade
"É claro que havia uma alusão aos exilados que, na época, ainda não eram os artistas, eram os políticos.
Mas é uma música lírica, não era uma música política"
Em um trecho da letra, Chico escreveu: "Eu hei de ouvir cantar uma sabiá", e entendidos e ornitólogos foram aos jornais explicar que sabiá fêmea não canta, só o macho
Usar "uma sabiá" foi uma sugestão do Tom, que falou pro Chico que é assim que os caçadores se referem ao pássaro, no feminino, e isso não tem a ver com ser fêmea ou macho
E essa não foi a única interferência do Tom na letra: ele escreveu e incluiu uma outra estrofe inteira, aparentemente sem nem avisar ao parceiro
O curioso é que essa estrofe adicional só foi cantada no festival, nas gravações posteriores, inclusive do Tom, ela foi abolida
O motivo musical inicial dessa melodia é a repetição de três notas, e esse motivo inicial vai ser desenvolvido durante a música
Já no começo ele aparece algumas vezes:
A parte final é toda com esse motivo musical de três notas repetidas
Uma curiosidade sobre Sabiá é que ela não foi composta como um samba, na versão do festival não tem samba, não tem síncopes
Mas já na primeira gravação do Tom, no disco Stone Flower, ele faz algo que o João Gilberto fez muito, inclusive em músicas do Tom, transformar canções em sambas
Na maioria das vezes em que o Tom tocou ou gravou Sabiá, ela está em samba
2. ORQUESTRAÇÃO O Tom era um apaixonado por vocais, na banda que ele montou e que o acompanhou nos últimos anos, a Banda Nova,
eram 5 mulheres nos vocais, além do Danilo Caymmi, que além de tocar flauta também cantava
Como eu disse antes, partiu do Chico o convite para Cybele e Cynara serem as intérpretes de Sabiá,
mas o arranjo vocal das duas vozes é todo do Tom, que ensaiou por dias com as cantoras
"Mas o Chico viajou, foi pra Itália, e o Tom ficava ensaiando eu e a Cybele, na casa dele. ali na Rua Codajás.
Então a gente ensaiou Sabiá toda ali, todo dia o Tom..."
Já o arranjo orquestral foi escrito por Eumir Deodato, um arranjador que foi bem próximo do Tom naquele período
O primeiro disco do Eumir, Inútil Paisagem, foi todo dedicado às composições do Tom, e depois do festival de Sabiá eles trabalharam muito juntos
Eumir escreveu os arranjos para o que seria o segundo disco do Tom com Frank Sinatra,
escreveu os arranjos para dois discos do Tom, Tide e Stone Flower, e ainda trabalharam juntos na trilha do filme "The Adventures"
Tem um detalhe na introdução de Sabiá que eu posso apostar que não é arranjo, não é uma frase do Eumir, é da própria composição, é do Tom
É a frase que imita o canto de um sabiá, e é possivelmente uma homenagem do Tom a um de seus mestres, Villa-Lobos
Villa usava instrumentos tradicionais de orquestra para reproduzir sons da floresta, e usou a flauta para reproduzir o canto do Uirapuru
Em Sabiá, é também a flauta que reproduz o canto do pássaro
3. A FORMA DO ARRANJO Sabiá é uma música em 3 partes, ABC, todas começando da mesma forma - vou voltar, sei que ainda vou voltar - mas cada uma com um desenvolvimento diferente
Nesse arranjo, Eumir Deodato faz uma introdução com aquela citação do canto do Sabiá, e segue a letra do Chico toda, as partes ABC
A música volta para a parte A e não faz a parte B, vai direto para a parte C, aqui com e letra que o Tom escreveu e que não aparece mais em gravações posteriores
E a música termina com um grande tutti da orquestra, tutti significa todos, todos tocando junto para um final apoteótico
Aliás o começo também é um momento em que a orquestra toca um pouco mais forte, partindo de um acorde bem dissonante
A flauta reproduzindo o canto do sabiá
Frases descendentes com madeiras e trompete com surdina,
e depois repetida com as cordas
Frase nas madeiras e trompete com base harmônica de metais
A música começa só com vozes e contrabaixo tocando a maioria das notas no contratempo
Metais e cordas fazem agora a base harmônica, com notas longas no trompete com surdina
Contracantos nas cordas
E as cordas agora fazem a base harmônica
Ataque forte dos metais, com trompete dobrando a melodia
Frase de flauta e trompete oitavados
Trompete com surdina fazendo uma segunda voz, no mesmo ritmo da melodia
Madeiras e cordas na base harmônica
Madeiras e cordas agora em intervalos de quartas
Madeiras numa frase fantástica em quiáteras
Contracanto das cordas agora começando mais para o grave, e depois seguindo na base harmônica
Trompete com surdina de novo em notas longas
Volta o contrabaixo tocando notas no contratempo e madeiras no ritmo da melodia em terças
Cynara e Cybele agora cantam a duas vozes
Madeiras e cordas em quartas, com o trompete tocando duas vezes a mesma nota
As vozes fazem um cânone
A frase em quiálteras antes do tutti da orquestra
Um tutti forte, com a flauta fazendo outro canto do sabiá
Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal, compartilha o vídeo
e pense na possibilidade de ser um apoiador do programa, a partir de apenas 10 reais
Acesse apoia.se/oarranjo, ou se você mora fora do Brasil acesse patreon.com/oarranjo
Se preferir contribuir com pix, a chave é contato@flaviomendes.com
Muito obrigado, até uma próxima
"Todos nós compositores que estávamos ali no maracanãzinho, assistindo a essa cena inimaginável
Se você reparar você vai ver que essa geração dos festivais encerrou seu ciclo ali.
Todo mundo pensou da mesma forma: isso virou um circo romano