Documentário: BBC revela venda ilegal de terras na Amazônia pelo Facebook (1)
Eu comecei a pesquisa entrando aqui no Facebook e pesquisando por alguns termos genéricos, tipo "floresta"
E aí surgiram dezenas de anúncios em que as pessoas estavam vendendo esses pedaços de floresta
A gente analisou dezenas de anúncios de diferentes partes do país
E logo encontramos detalhes suspeitos
Este anúncio mostra uma área que foi claramente recém-desmatada, e a pessoa diz que até
aceita uma moto como parte do pagamento
Mas tinha coisa bem mais grave
Nossa investigação cruzou a localização das terras com imagens de satélite e descobriu
que vários desses lotes ficavam dentro de áreas protegidas da Amazônia
Alguns dos locais com mais biodiversidade do mundo estavam sendo anunciados como ideais
para a criação de gado e a extração de madeira
E a vitrine dessa venda ilegal é o Facebook
São muitos anúncios, mas como que a gente prova que isso é real, que essas pessoas
existem, que elas realmente estão vendendo porções de floresta abertamente?
A única forma de descobrir é indo atrás delas
Vários dos anúncios no Facebook vinham de um lugar: Rondônia
Um Estado famoso pelos conflitos por terra
e por ter um dos maiores índices de desmatamento na Amazônia
Em 2018, os eleitores daqui deram 72% dos votos para Jair Bolsonaro, que prometeu usar
as riquezas da floresta para o bem-estar da população
Desde o governo Bolsonaro, os invasores de terra têm se sentido muito empoderados
E tão empoderados ao ponto que eles não têm vergonha de ir para o Facebook, para as redes
sociais, e negociar terras, colocar que estão vendendo terra
Nós viemos a Rondônia encontrar os vendedores que vimos no Facebook, mas para isso selecionamos
um representante
Com uma câmera escondida, ele vai dizer que trabalha para grandes fazendeiros de São Paulo
Mexer com terra em Rondônia é arriscado
Só nos últimos cinco anos, mais de 50 pessoas foram mortas em conflitos agrários aqui
Rondônia registra 37 mortes por conflito agrário desde 2015
A vítima foi morta numa emboscada, enquanto trabalhava na construção de uma cerca
A polícia já identificou o principal líder do bando, que matou as cinco vítimas
As mortes no Estado representam 30% dos assassinatos por conflitos de terra no país
Para proteger nosso representante, não revelaremos sua identidade
Vamos chamá-lo de Lucas
Marcamos um encontro entre Lucas e o primeiro vendedor numa padaria
Passamos semanas planejando a operação
Será que nossa estratégia daria certo?
Será que o vendedor suspeitaria de Lucas?
Alô
Opa, como foi?
Ah, ele chegou ficou um pouco mais reservado, meio que olhando, dando pouca informação
de início
Esse vendedor é um cara urbano, fundamentalmente
Ele mora numa cidade, ele trabalha num frigorífico como supervisor, então aparentemente ele
está fazendo isso como algo paralelo, um dinheiro extra que ele vai ganhar
Essa não é a principal fonte de renda dele
E ainda assim ele tá envolvido nisso
Fabricio começa a se abrir
Ele diz a Lucas que não tem nenhuma prova legal de que é o proprietário da terra
Muita gente que colocou anúncios no Facebook admite que não tem a documentação necessária
para vender aquela terra
Quer dizer, eles estão lidando com uma impunidade total
Eles sabem que nada vai acontecer
Fabrício revela estratégias para driblar a fiscalização
Uma delas é deixar em mau estado a estrada que dá acesso ao lote, para dificultar o
trabalho de agentes ambientais
Quando ele fez o anúncio, ele colocou uma foto de satélite que mostrava a área delimitada,
e ela era quase inteiramente coberta por floresta
Mas Fabrício diz que o cenário mudou
E ele convida Lucas a conferir por conta própria
Lucas acompanha Fabrício numa viagem de carro de duas horas a partir de Porto Velho
Nós monitoramos o deslocamento a distância
Eles chegam a um pedaço de terra perto do rio Madeira
Uma área que, segundo a lei, deveria estar coberta por mata nativa
É recente essa derrubada que ele fez?
A derrubada da área é bem recente, deu pra ver isso lá
Mas, assim, bem desolador o cenário, mesmo
Tudo derrubado, realmente
Com a ajuda de Lucas, comprovamos que o lote de terra que Fabrício anunciou no Facebook
é real
Aqui, aqui que você vai derrubar?
Vai vir o trator agora, vai limpar tudo isso aqui
Dá uns 4 alqueires, 5 alqueires, por aí
Desde que postou o anúncio, Fabrício derrubou a floresta nativa e ateou fogo no terreno
Sem o título da terra e uma licença especial, derrubar a mata e fazer queimadas é ilegal
Mesmo assim, pedaços da floresta amazônica são destruídos desse jeito todos os anos
Entre agosto de 2019 e julho de 2020, o bioma perdeu 11 mil km², o maior índice desde 2008
A terra sem mata vale muito mais
Quando eu entrei em contato com ele, ele me disse que o que tava ali no anúncio já não
valia mais, porque ele já tinha derrubado a mata, e o preço que ele tava querendo agora
era três vezes maior do que ele tinha postado originalmente
O caso dele mostra como o desmatamento inflaciona o preço da terra
A área passa a valer muito mais porque ela fica mais preparada para alguma atividade
econômica, como a pecuária ou plantação de soja
E não só por isso
Invasores de terras públicas têm a expectativa de regularizar a ocupação
E uma terra já desmatada pode facilitar o processo
Hoje, só podem ser regularizadas as áreas ocupadas até 2014, mas o governo e a bancada
ruralista defendem esticar esse prazo
Depois das gravações, procuramos Fabrício para que ele se manifestasse sobre nossa investigação,
mas ele não respondeu
O desmatamento está em todos os cantos de Rondônia
A meia hora de Porto Velho, grupos de madeireiros trabalham sem descanso
A gente está entrando agora na floresta com um grupo de madeireiros ilegais
Eles deixaram a gente entrar para ver como é que eles derrubam as árvores
Esse é o primeiro estágio no processo de desmatamento
Este madeireiro diz que trabalha há cinco anos cortando árvores gigantes
Precisa, assim, de alguma licença específica para cortar ela?
Não… é ilegal
É ilegal
Precisa sim, (mas) nós trabalhamos assim sem nota nenhuma
Mas dá, mesmo assim dá, funciona pra vocês?
Funciona
Escondido
Funciona
Ainda não é bem perseguido
Não?
Não
A gente está dentro de uma área de floresta que acabou de ser derrubada
Você vê aqui um monte de carvão, a madeira foi queimada recentemente
E já está sendo aberta para virar pastagem, provavelmente
Essas toras gigantes ainda vão ser retiradas, mas com um foguinho mais ela já vira, fica
limpinha para plantar capim
Os tempos são favoráveis para quem quer desmatar
O Ibama, agência federal que combate o desmatamento ilegal, teve uma redução de 40% nos gastos
com fiscalização desde 2018
Você não fica triste quando uma árvore grandona dessa cai?
Eu acho é gostoso
Quando eu acho uma bicha grande, eu meto a motosserra e derrubo
Quantas árvores dessa você acha que derrubou já?
Derrubei muitas, não tenho nem ideia
Mais de mil?
Mais
Quanto vale uma árvore dessas mais ou menos?
Dois mil reais.
Dá pra ganhar muito dinheiro cortando madeira?
Dá
Pra quem sabe trabalhar
É perigoso, né
Você já viu gente que já machucou muito?
Já, colega meu
O que aconteceu?
Pau escorrega lá e mata
Quebra
Qual que é sua idade?
21
E o que você pretende, planeja para o futuro?
Quais são seus objetivos?
O objetivo é trabalhar, criar minha família
O que aprendi a trabalhar foi com isso
Aí eu, desde criança, aprendi
O sistema é esse aqui, mexer com madeira
Rapaz, a gente vai levando, né?
É multado, vai empurrando com a barriga.
Mas você acha que uma hora vai parar?
Ou vai...
Não para, não
Por quê?
Porque a Amazônia aqui é muito grande
Muita madeira cortada ilegalmente no Brasil é vendida como se fosse legal
Para isso usa-se um esquema bem simples
As toras são registradas como se tivessem saído de florestas onde a extração é permitida
E as madeireiras autorizadas a explorar essas florestas declaram que retiraram mais madeira
do que realmente havia no local
Este madeireiro diz não ter problemas para vender madeira cortada sem licença
Aqui mesmo, eu derrubo, serro ela todinha, e levo ela pra cidade e fica no depósito
E vende peça para fazer casa, para fazer tudo
Agora, quando eu tô puxando madeira, ela vai para a serraria
No caminho de volta à cidade, encontramos centenas de toras prontas para serem vendidas
Um negócio impressionante de andar em um lugar como esse e ver tantas árvores, tantos troncos de
vários formatos, várias espécies
Esse lugar tem centenas e centenas de anos de floresta, mas agora tá tudo morto
Quase toda coberta por floresta até 1980, Rondônia já perdeu quase um terço de sua
mata nativa
Áreas protegidas e terras indígenas abrigam praticamente tudo o que sobrou da Floresta
Amazônica no Estado
E mesmo esses territórios estão sob crescente ameaça
Na década de 70 e 80, logo após o golpe militar, a ideia era transferir aqueles contingentes
populacionais excedentes, do Sul e Sudeste do país, e até do Nordeste, e trazer aqui
para o Norte, para as terras incultas
Então a forma desordenada como a ditadura civil-militar tentou ocupar o estado de Rondônia
causou esse caos na estrutura fundiária
E hoje, no meu entender, o caos na estrutura fundiária é um excelente negócio
No dia seguinte, acionamos nosso agente para que encontrasse um corretor de imóveis que
identificamos na nossa investigação
Alcimar da Silva tem um escritório no centro de Porto Velho, mas é principalmente pela
internet que ele busca atrair clientes
O card de cartas dele é o Facebook, ele abria o Facebook e falava: tem essa aqui, opa, essa
aqui é boa
E aí ele me mandava o link do Face no WhatsApp
De todos os anúncios que ele colocou, três nos chamaram a atenção, particularmente
o de uma área de 830 hectares – na verdade duas áreas uma na frente da outra, com 830
cada –, uma área completamente coberta de floresta
E com base nas informações que estavam no anúncio a gente conseguiu descobrir que essa
área fica totalmente dentro de uma floresta nacional
Ou seja, em hipótese alguma ela poderia estar sendo vendida
Cada lote foi anunciado por 1 milhão e 600 mil reais
Alcimar disse que mais detalhes das áreas só poderiam ser obtidos com o proprietário,
cujo nome ele não revelou
Mas ele indicou que, com os contatos certos e corrupção, qualquer restrição ambiental
poderia ser contornada
Ele falou "não, o cara arruma tudo, o cara arruma tudo!
Dá pra abrir (desmatar) 50%"
Eu falei "50%?
Mas é Amazônia
50% isso aí você abre lá no Rio Grande do Sul"
E o cara "não, dá pra abrir, dá pra abrir"
Procuramos Alcimar para que ele comentasse as afirmações gravadas,
mas ele não enviou resposta
Na manhã seguinte, deixamos Porto Velho rumo ao interior de Rondônia
Viajamos até Ariquemes, uma das regiões com maior produção agropecuária no Estado
Viemos investigar o papel que a criação de gado tem na destruição da Amazônia
Nosso agente irá encontrar André Alves de Souza, um vendedor de terras que também localizamos
por meio de um anúncio no Facebook
Opa, tudo bem, como é que tá?
Tudo certo aí, tranquilo?
Beleza, vamos sentar ali fora?
Esse vendedor é um cara jovem
Um cara que aparentemente se casou recentemente
Ele é pecuarista, porque algumas empresas da região listam ele como um cliente preferencial
André chega ao encontro desconfiado
Mas André se solta e revela que o lote que ele anunciou no Facebook fica dentro de uma
reserva extrativista – ou seja, uma área destinada a comunidades tradicionais que não poderia estar a venda
Eles estão completamente cientes de que, se eles não ocuparem a área, beleza: vai
ficar uma reserva estadual
Mas se eles ocuparem e derrubarem, é… aí eles podem vir a conseguir legalizar essa área
André tenta tranquilizar nosso agente
E diz que é fácil trabalhar fora da lei na região
E ele nos conta como faz para vender o gado que cria em áreas desmatadas ilegalmente