A saga de Bolsonaro com a cloroquina: de tuítes de Trump à CPI da Covid
No início da pandemia, médicos e cientistas do mundo inteiro começaram a discutir e a
testar medicamentos já existentes no mercado, com a expectativa de que pudessem ajudar na
batalha contra a covid-19.
Dois desses remédios eram usados contra malária, artrite e lúpus e apresentaram resultados
aparentemente promissores: a cloroquina e a hidroxicloroquina.
Mas em poucos meses, as evidências científicas mostraram que essas substâncias, na verdade,
não ajudavam contra a covid-19, traziam efeitos colaterais potencialmente
graves e davam uma falsa sensação de proteção contra o coronavírus.
Sou Paula Adamo Idoeta, da BBC News Brasil aqui em São Paulo,
e neste vídeo lembrar como a cloroquina surgiu no contexto da covid-19 e foi rapidamente
afastada pelos cientistas, mas até hoje é promovida ativamente pelo presidente Jair
Bolsonaro.
E isso mesmo contrariando todas as principais recomendações nacionais e mundiais de saúde.
Se não quiser tomar, não tome.
Mas não fique falando besteira e tentando desestimular quem queira tomar.
Não faz mal.
A linha do tempo começa nos Estados Unidos e termina aqui, na CPI da Covid, ainda em
curso no Senado brasileiro.
Em março de 2020, o então presidente americano Donald Trump começou a elogiar a cloroquina
por seu potencial de “virar o jogo contra o vírus”.
Trump chegou a tuitar um estudo francês que acabaria ficando famoso, feito pela equipe
do infectologista Didier Raoult.
O estudo mostrava o resultado do tratamento de 26 pacientes de covid-19, em comparação
com um grupo de controle de 16 pacientes, e concluía que "a cloroquina e a hidroxicloroquina
eram eficientes contra o SARS-CoV-2".
Eu conversei com a cientista holandesa Elisabeth Bik, uma entre uma série de pesquisadores
internacionais que apontaram problemas graves no estudo:
Mas os principais problemas identificados por Bik foram conflitos de interesse na publicação
do estudo e o fato de seis dos 26 pacientes estudados terem sido excluídos do resultado
final.
Deles, três haviam sido transferidos para a UTI, um morreu e dois abandonaram a medicação.
Para a Elisabeth Bik, o estudo foi mal feito e impedia qualquer tipo de conclusão sobre
o eventual impacto da cloroquina no tratamento da covid-19.
Mas ela acha que, a partir do momento em que Trump tuitou a respeito, o medicamento foi
politizado.
Assim, quem era republicano passou a defendê-lo, independentemente das evidências científicas,
assim como quem era democrata passou a criticá-lo.
No dia seguinte a Trump tuitar sobre o estudo, a venda da cloroquina e da hidroxicloroquina
aumentou 46 vezes em relação a um dia normal nas farmácias dos Estados Unidos, segundo
um levantamento do The New York Times.
Depois, Trump afirmou que ele mesmo estava tomando o remédio, em tese como prevenção
à covid-19, o que também é contraindicado:
É bom lembrar que Trump já estava contrariando uma recomendação de seu próprio governo:
a FDA, agência americana regulatória de medicamentos, havia advertido contra o uso
da cloroquina fora de testes clínicos, depois de surgirem evidências de arritmia cardíaca
em pacientes.
Mais tarde, Didier Raoult, o diretor do instituto francês que produziu o estudo da cloroquina,
foi denunciado por uma entidade médica francesa por "promoção indevida de medicamento".
Além desse estudo francês, outro que pode ter influenciado Trump não é bem um estudo:
é um documento de Google Docs que ganhou visibilidade depois que seu autor, chamado
Gregory Rigano, fez aparições na emissora conservadora Fox News
Ele dizia que a hidroxicloroquina era capaz de "eliminar o vírus completamente".
Mas, segundo o jornal Washington Post, Rigano não é médico ou cientista, e sim advogado.
Ele tinha dito que seu estudo havia sido elaborado "em consulta com a Escola de Medicina da Universidade
Stanford", o que a universidade negou.
Em questão de meses, as autoridades americanas começaram a se distanciar da hidroxicloroquina.
Em 29 de junho, o médico Anthony Fauci, que chefia a força-tarefa americana de combate
à pandemia, foi enfático em uma declaração contra o medicamento.
Na Europa, alguns países começaram, ainda em maio de 2020, a suspender o uso da cloroquina
em seus protocolos de tratamento contra a covid-19.
No Brasil, porém, o governo foi na direção oposta.
O presidente Jair Bolsonaro começou a falar da hidroxicloroquina em março, seguindo o
entusiasmo de Donald Trump na época.
Os EUA liberou remédio com potencial para tratar do coronavírus
Na verdade, o que havia acontecido naquele dia é que Trump tinha pedido agilidade à
agência FDA na liberação de terapias que pudessem ter efeito contra a covid-19.
A agência chegou a emitir autorização de uso emergencial à hidroxicloroquina e à
cloroquina para um número limitado de casos hospitalares de covid-19, mas logo voltou
atrás.
Em abril, fez uma advertência contra o uso e, em 15 de junho, foi além: revogou a autorização
para o uso emergencial da droga.
O motivo: "diante de eventos cardíacos sérios e outros potenciais efeitos colaterais sérios,
os conhecidos e potenciais benefícios da hidroxicloroquina não compensam mais os conhecidos
e potenciais riscos do uso autorizado", é o que diz o comunicado da agência.
Mas aqui no Brasil, o levantamento Direitos na Pandemia, feito por pesquisadores da USP
em parceria com a Conectas Direitos Humanos, identificou entre março de 2020 e janeiro
de 2021 ao menos quatro medidas federais promovendo diretamente ou facilitando a prescrição
da cloroquina e da hidroxicloroquina.
Entre essas medidas estão um protocolo do Ministério da Saúde de 20 de maio de 2020,
recomendando o uso da cloroquina em todos os casos de covid-19, e o aplicativo TrateCov,
também do ministério, que também incentivava a medicação com hidroxicloroquina, mas foi
tirado do ar pouco depois.
A gente vai voltar a falar desse aplicativo daqui a pouco.
Bem, a aposta na cloroquina foi o estopim para a saída de dois ministros da Saúde
nos primeiros meses da pandemia:
Luiz Henrique Mandetta foi demitido em 16 de abril de 2020 e Nelson Teich entregou o
cargo em 15 de maio.
No livro Um paciente chamado Brasil, Mandetta escreveu
que o presidente Bolsonaro :
E Nelson Teich, ao anunciar sua demissão e ser substituído por Eduardo Pazuello, declarou:
"não quero manchar minha história por causa da cloroquina".
As promoções da cloroquina por Bolsonaro foram muitas, o que levou críticos a dizerem
que ele havia virado uma espécie de garoto-propaganda - disseminando a falsa impressão de que o
medicamento seria capaz de prevenir a doença.
Quando Bolsonaro confirmou que havia se infectado pelo coronavírus, eis o que ele falou:
Do ponto de vista científico, a cura de Bolsonaro não pode ser atribuída à cloroquina: em
parte das pessoas contaminadas pelo coronavírus, o curso normal da covid-19 é a eliminação
do vírus pelo organismo sem a necessidade de internação ou de medicação.
Eu conversei com a médica Karina Calife, professora do Departamento de Saúde Coletiva
da Santa Casa de São Paulo e coautora, na Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, de
uma nota técnica sobre a hidroxicloroquina que foi preparada para ser oferecida à CPI
da Covid.
E o que ela me disse é que, no âmbito científico, já não existe mais uma controvérsia em
torno da cloroquina, e já se criou um consenso da ineficácia do medicamento no tratamento
da covid-19.
Para ela, do ponto de vista da ciência, o uso da cloroquina é hoje indefensável por
um profissional de saúde.
A despeito disso, a promoção dos medicamentos evoluiu para a defesa, por parte de Bolsonaro
e do Ministério da Saúde sob Eduardo Pazuello, do que passou a ser chamado "tratamento precoce".
O tratamento precoce o coquetel que inclui a hidroxicloroquina, a azitromicina e a ivermectina,
entre outros remédios e suplementos alimentares.
A promoção dessas drogas ocorreu até mesmo em uma live recente, quando Bolsonaro voltou
a promover o medicamento, sem citar o nome.
Mas a CPI continua sendo um vexame nacional.
Não querem investigar o desvio de recursos, querem falar sobre - não vou falar o nome
para não cair a Live.
Aquele negócio que o pessoal usa pra combater a malária.
E eu usei lá atrás, mais ou menos junho, julho, e no dia seguinte estava bom.
E vou dizer mais: há poucos dias, estava me sentido mal e antes mesmo de procurar médico,
eu tomei aquele remédio, que estava com sintomas.
Tomei, fiz exame, não tava.
Qual o problema?
Eu vou esperar sentir falta de ar para procurar hospital?
Nada disso tem qualquer embasamento científico.
Em março deste ano, um painel de especialistas internacionais da Organização Mundial da
Saúde publicou um estudo dizendo que a hidroxicloroquina não deveria ser usada como preventivo à
covid-19, uma vez que o medicamento "não teve efeito significativo sobre a infecção
por covid-19 e provavelmente aumentava o risco de efeitos adversos".
Em janeiro deste ano, Pazuello mudou discurso, afirmando que o Ministério da Saúde havia
defendido o "atendimento precoce", e não o "tratamento precoce", algo contradito por
suas declarações prévias e pelas iniciativas do ministério.
O que nos leva à parte final deste vídeo: a CPI da Covid-19, instalada no Senado para
investigar ações e omissões do Poder Executivo na pandemia, que voltou a trazer a hidroxicloroquina
para o centro dos debates.
Secretária, por favor.
Vossa Senhoria mantem a indicação de cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento de Covid?
Eu mantenho a indicação, enquanto médica, para usar todos os recursos possíveis para
salvar vidas.
Em um de seus dois depoimentos, Pazuello chegou a dizer que a cloroquina é um anti-viral
e foi corrigido na hora pelo senador Otto Alencar.
Ele também disse que nunca mandou comprar hidroxicloroquina e nunca recomendou o medicamento
- declarações que também não se sustentam.
Quanto a medicamentos, tivemos mais de 13 milhões de doses de medicamentos distribuídos,
comprimidos, etc.
E aí, também como os comprimidos de Cloroquina e de Oseltamivir foram distribuídos, pra
quem, quantidade, qual valor.
Sobre o aplicativo TrateCov, Pazuello disse que o programa foi "hackeado e lançado por
um hacker".
Mas o TrateCov foi lançado oficialmente pelo Ministério da Saúde, com direito a programa
na TV Brasil e postagens promocionais nas redes socais.
E diante do aumento no número de casos em Manaus, o Ministério da Saúde lançou um
aplicativo para agilizar o atendimento de clientes com sintomas de covid-19 e garantir
um tratamento precoce.
É o TrateCov, ferramenta desenvolvida por servidores do próprio ministério.
Agora, uma das teorias levantadas na CPI da Covid é de que Bolsonaro teria uma espécie
de gabinete paralelo que o orientaria nas medidas de enfrentamento pandemia, incluindo
na adoção e promoção da cloroquina a despeito das evidências científicas.
Na visão dos senadores críticos ao governo, essa teoria foi sustentada pelos depoimentos
de Mandetta, Teich e do presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres.
Barra Torres inclusive confirmou ter havido um debate dentro do governo para mudar a bula
da cloroquina, algo que acabou não acontecendo.
Foi proposta a mudança da bula do medicamento cloroquina para incluir o tratamento de covid-19
Esse documento foi comentado pela doutora Nise Yamaguchi, o que provocou uma reação
deseducada ou deselegante minha, uma reação muito imediata, de dizer que aquilo não poderia
ser porque, talvez não seja do conhecimento de vossas excelências, só quem pode modificar
bula de uma medicamento registrado é a agência reguladora daquele país, desde que seja solicitado
pelo detentor do registro.
Então, quando houve uma proposta de uma pessoa física de fazer isso, me causou uma reação
mais brusca de falar isso não tem cabimento, isso não pode.
Ao mesmo tempo, a tese do ministério paralelo foi negada por outros depoentes, como Pazuello
e o ex-chanceler Ernesto Araújo.
O medicamento certamente vai continuar sob os holofotes nos próximos depoimentos da
CPI, e a gente vai continuar de olho nos desdobramentos.
Por hoje é só.
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Até a próxima!