2 crises que podem explicar indicação de Crivella a embaixada na África do Sul
No fim dos anos noventa, Marcelo Crivella lançou uma música em que canta o seguinte:
"A dor de ontem não vai vencer Quem vive aqui sabe esquecer"
Então ele repete: "África, África, África".
Sou Laís Alegretti, da BBC News Brasil, e neste vídeo eu explico porque fazer esquecer
"a dor de ontem", como diz na música, talvez seja a principal missão de Crivella em sua
possível volta à África.
O bispo, que ajudou a fincar a Igreja Universal do Reino de Deus no continente africano, foi
indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para a embaixada do Brasil na África do Sul.
Crivella não está numa boa fase: foi preso preventivamente e afastado do cargo de prefeito
do Rio no ano passado, acusado de chefiar um esquema de propina.
E perdeu a reeleição para Eduardo Paes.
Se for nomeado embaixador, ele passa a ter foro privilegiado, e o processo a que responde
é transferido para o Supremo Tribunal Federal.
A indicação ainda depende de aval da África do Sul e da aprovação do Senado brasileiro.
Os advogados de Crivella dizem que ele foi preso injustamente em uma das mais abusivas
operações dos últimos anos.
E que sua gestão à frente do poder municipal no Rio não teve qualquer ilegalidade.
Mas para além dos problemas enfrentados por Crivella, especialistas ouvidos pela BBC News
Brasil afirmam que uma confirmação dele na embaixada seria uma forma de tentar estancar
duas grandes crises:
a enfrentada pela Universal na África e uma espécie de rachadura na relação da igreja
com Bolsonaro, que estaria de olho nas eleições do ano que vem.
Vamos começar pela primeira crise.
A tensão da Universal no continente africano aumentou nos últimos meses, principalmente
pelo que aconteceu em Angola.
Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR) do Brasil e o Serviço de Investigação
Criminal angolano contaram para a gente, existem o que eles chamam de provas fartas e contundentes
contra quatro integrantes da igreja, denunciados sob acusação de crimes como lavagem de dinheiro,
evasão de divisas e associação criminosa.
A Universal nega todas as acusações, as classificou de "fake news" e disse que os
quatro membros acusados ainda não conseguiram acesso à investigação formal.
A igreja afirmou para a reportagem, abre aspas:
E não é só isso.
Mas para entender melhor essa história, vamos viajar um pouco no tempo.
Alguns anos depois da fundação da Universal, em 1977, o bispo Edir Macedo começou um projeto
de expansão internacional da igreja.
Na África, essa ampliação começou justamente em Angola, por volta de 1991.
Na África do Sul, isso aconteceu mais ou menos em 1993.
E é aí que entra Crivella.
Ele, que é sobrinho de Edir Macedo, foi enviado como missionário para cuidar da expansão,
que ocorria pela compra de espaços em lugares onde há maior movimentação de pessoas,
abertura de templos e investimento em mídia.
A antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, que pesquisa os programas de gênero desenvolvidos
pela Igreja Universal no cenário político de agora, explica o seguinte:
"Era super importante ter alguém de confiança que realmente investisse nesse projeto de
transnacionalizador.
Foi Crivella quem produziu esse primeiro processo de organização, elaboração e gestão do
crescimento institucional da IURD pelos outros países da África e dentro da própria África
do Sul, que é o país onde existem mais templos da Universal fora do Brasil.
A África do Sul é um lugar importante pra IURD"
Crivella conta um pouco dessa história em um vídeo publicado no canal dele no YouTube:
"Em 1994, cheguei com minha esposa e três filhos na cidade de Durban.
Saíamos pelas ruas dando folhetos, convidando as pessoas para a reunião na igreja"
"E logo ela [a igreja] começou a encher.
Era uma lojinha pequena dentro do mercado indiano.
Deus abençoou e se transformou numa grande catedral."
No vídeo, ele mostra ao lado da esposa o templo da Universal em Durban, cidade do leste
da África do Sul.
A data de chegada de Crivella por lá coincidiu com o fim do Apartheid, o regime de segregação
racial na África do Sul.
lana van Wyk, que é professora de antropologia da Universidade de Stellenbosch, na África
do Sul, conta que a ideia inicial da Universal era atingir os falantes de português, que
tinham vindo de países vizinhos que falam a língua.
Tanto que os primeiros cultos em Joanesburgo, maior cidade da África do Sul, eram nessa
língua.
Wyk é autora do livro The Universal Church of the Kingdom of God in South Africa, ou
A Igreja Universal do Reino de Deus na África do Sul.
A professora ainda lembra bem da presença de Crivella no país.
Para Wyk, a Universal se aproveitou do momento pós-Apartheid, em que havia sentimento de
esperança no país, para angariar membros.
Com seu discurso de prosperidade, deslumbrou os sul-africanos, cheio de esperanças de
mobilidade social e integração racial.
Mas hoje, segundo o site da Universal da África do Sul, há 309
igrejas por lá.
Isso é menos que as 320 contabilizadas por Wyk na época em que publicou seu livro, em
2014.
Segundo ela, a igreja vem perdendo força na região, com membros migrando para outras
denominações pentecostais ligadas à figura de profetas.
Essa perda de membros, ao lado da crise em Angola, forma um cenário preocupante para
a Universal no continente.
Bispos e pastores angolanos divulgaram há dois anos um manifesto com acusações públicas
contra os brasileiros da igreja, iniciando um processo de "reforma" em Angola.
Para a professora Jacqueline Teixeira, a presença de Crivella seria uma forma de ajudar na mediação
dos conflitos e pensar na contenção de danos dessa crise no continente, que ela classifica
como "gravíssima".
Voltar à África também deve cumprir um desejo antigo de Crivella.
Em junho de 2014, em entrevista ao jornal da Universal, a Folha Universal, Crivella
disse não ter sido, abre aspas, "fácil viver na África em um tempo de guerra política
no fim do apartheid".
"Mas agradeço muito a Deus por ter me dado a honra de ter passado por aquelas dificuldades,
que apenas nos fizeram mais fortes."
Quando questionado sobre se tinha vontade de se tornar político, Crivella respondeu:
"Confesso que não queria.
Não queria mesmo.
O que eu sonhava era voltar para a África ou qualquer que fosse o país."
Um sonho que agora também seria conveniência, em razão dos processos do qual é alvo agora.
Agora chegamos à segunda crise que pode ter levado à indicação dele para a embaixada:
Segundo os especialistas com quem conversamos, o envio de Crivella para a África do Sul
também cairia como uma luva para Bolsonaro, que foi cobrado por lideranças da Universal
pela omissão do Itamaraty diante da crise em Angola.
Para o teólogo evangélico Fábio Py, professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense,
a indicação é uma maneira de afagar a crise entre ele e a igreja, que já cobrou diversas
vezes posicionamento do presidente em relação às tensões no continente africano.
"Bolsonaro percebe que não consegue resolver a questão de Angola porque entra em questão
nacional de Angola."
"Para dar outro caminho, ele abre possibilidade de Crivella assumir a relação Brasil-África
do Sul"
Para o Fábio Py, Bolsonaro não quer "perder a Universal, sua estrutura e o processo de
propaganda da Universal", já de olho nas eleições.
A professora Jacqueline Teixeira concorda:
"Mantê-la como apoio é fundamental para o governo Bolsonaro batalhar a sua estabilização
e seu crescimento na disputa por esse voto evangélico nas eleições em 2022",
A Universal é representada no Congresso pelo partido Republicanos, aliado do governo.
Além disso, o eleitorado evangélico tem um peso significativo para o presidente.
Uma pesquisa Datafolha divulgada no dia 12 de maio apontou o ex-presidente Lula e Bolsonaro
empatados no primeiro e segundo turnos entre o eleitorado evangélico.
Ou seja, os números indicam que o presidente precisa se mexer para não perder votos com
essa parcela de eleitores.
Para a Jacqueline Teixeira, o discurso ostensivo por parte de lideranças da Universal sobre
a falta "de apoio e resguardo" do Itamaraty em relação às crises na África fez o governo
se mexer.
"É como se o governo Bolsonaro não estivesse correspondendo ao apoio da igreja, o que produz
uma possibilidade de repensar esse apoio eleitoral nas próximas eleições"
Bem, é isso.
Espero que este vídeo tenha ajudado você a entender melhor o que está em jogo nessa
indicação.
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Tchau!