Tecnocracia #55: Como o bolsonarismo usou a tecnologia para prender nossos pais em uma realidade paralela (2)
Ao se desintermediar — ou seja, ser capaz de falar direta e constantemente com seu público —, Bolsonaro não precisava passar pelos crivos impostos pela mídia tradicional, como perguntas incômodas ou checagens sobre a veracidade do que falava. Ao se comunicar apenas em ambientes controlados pelo seu grupo, pode-se falar o que quiser, sem esperar qualquer tipo de questionamento. A desintermediação não envolve apenas a construção do grupo, mas também sua alimentação — é preciso uma produção constante de novos conteúdos ou a recuperação de antigos a fim de manter a base sempre revoltada, mobilizada, ativa.
Mas o que ajuda a explicar a adesão tão alta até hoje por alguns grupos? Só resumir em “ah, é o antipetismo” é pouco esclarecedor, ainda que o fenômeno tenha tido uma importância comprovada. Vamos falar sobre alguns traços facilmente perceptíveis nestes grupos. O primeiro é a desconfiança generalizada. Há um traço quase neurótico dentro de grupos bolsonaristas de que ninguém no mundo presta e todos estão tentando enganá-los. Isso vale, especialmente, para a mídia e os políticos rivais. É comum encontrar nesses grupos lembranças sobre erros ou falta de isenção históricas de alguns veículos para justificar o porquê daquele jornal ou TV não ser confiável. Tiremos algo da frente: toda empresa de mídia tem um lado e todo veículo erra. Isso é fato. Todos os veículos tradicionais publicam erratas, alguns mantêm profissionais dedicados apenas a analisar e criticar a cobertura do veículo, cargo conhecido como ombudsman, para ter uma abordagem mais honesta sobre erros e incorreções. Você pode não concordar com editorial X ou Y, mas é inegável que os veículos tradicionais, principalmente na reportagem, trabalham com informações factíveis e/ou verificáveis, buscam o contraditório e, quando erram, se justificam (na maior parte das vezes) sem que a Justiça as obrigue.
Isso passa por outro ponto fundamental: o público em geral não entende como funciona o jornalismo. Um jornal é um apanhado de diferentes formatos de conteúdos. Há o editorial, que é a voz do dono expressa em artigos curtos. Há os artigos de opinião, assinados por autores(as) convidados(as) pelo jornal. Há as reportagens, feitas por jornalistas que ouvem fontes especialistas, testemunhas, pesquisa — enfim, apuração. Ainda assim, é comum perceber o quanto reportagens baseadas em dados oficiais são encaradas como artigos de opinião, como se o(a) jornalista tivesse sentado com a ideia pronta da manchete e forjado textos e dados do nada para justificar sua opinião.
“Ah, Guilherme, isso já aconteceu”. De novo, inegável, mas é muito mais exceção. O padrão é o(a) jornalista acompanhar o tema durante meses ou anos, juntar dados, falar com especialistas e, ao discutir o tema com outros jornalistas da redação, decidir o que é notícia e o que não é. Existe método no jornalismo profissional. Esse é o jeito correto, da mesma maneira como a melhor abordagem de segurança da informação é assumir que o sistema tem falhas e trabalhar incansavelmente para corrigi-los ou mitigá-los em vez de se fechar em uma bolha de negação. Mas, para o bolsonarismo, essas eventuais falhas do jornalismo tradicional é argumento mais que suficiente para que abracem “sites” e “ativistas” travestidos de jornalismo cujo único propósito é enaltecer Bolsonaro e espalhar narrativas que corroborem seu projeto de poder. A forma como o bolsonarismo — e talvez seus pais sejam assim — descarta a Folha de S.Paulo, por exemplo, mas consome o Terça Livre é um indicativo claro de como essa falta de conhecimento sobre o metiê funciona. Vale lembrar também que essa desconfiança não é nova, foi nutrida por décadas. Não foi o bolsonarismo que inventou a expressão “Globolixo”. Eu ouço também muitas críticas falando que "ah, o veículo X ou Y errou, logo vou parar de consumir isso e eu vou pro outro". Você para de consumir uma coisa que é falível mas que tem interesse em corrigir esses erros, e vai para uma coisa ainda pior, muito pior, sem dúvida nenhuma. Mas enfim. Outro comportamento constante em grupos bolsonaristas é o saudosismo de um tempo que nunca existiu ou, se existiu, não viveu ou, se viveu, era limitadíssimo a um grupo específico. Ouço, com uma certa frequência, algo na linha de que “a educação do Brasil era boa durante a ditadura militar”, algo que é uma mentira deslavada. Qualquer estatística educacional mostra que, hoje, a educação brasileira é melhor e mais inclusiva. Em 1968, 24 de cada 100 jovens eram analfabetos. Hoje, não passam de 5. O gasto com educação saltou de menos de 3% do PIB na ditadura para quase 6% na última década. A quantidade de jovens na escola também subiu: “em 1970, 67,1% da população de 7 a 14 anos frequentava a escola. Esse número sobe para 81,8% em 1985, último ano do governo militar (…) e alcança 98,5% em 2015, de acordo com a Pnad, realizada pelo IBGE”, segundo uma reportagem completa feita pela revista Nova Escola com ajuda da agência de checagens Aos Fatos. No geral, o Brasil da ditadura era majoritariamente miserável, faminto, ignorante e rural.
A educação é um exemplo de um padrão. A realidade que os pais bolsonaristas sentem é, na maior parte das vezes, baseada em delírios ou em uma visão deturpada ou limitada da realidade. Não é porque você aprendeu latim na escola há 50 anos que a educação hoje é pior do que era. Muitas dessas teorias acabam sendo recebidas e/ou amplificadas por conteúdos dos grupos, o que nos leva a outro ponto: os pais bolsonaristas são simples repetidores. Eles recebem informações e as replicam sem pensar muito, movidos mais pela emoção do que pela razão. Até mesmo por gente formada em áreas diretamente relacionadas à pandemia, como medicina e biologia. Eu estudo comunidades de extrema-direita e é impressionante como os mesmos assuntos e argumentos que você vê surgirem nesses grupos acabam, dias depois, nas bocas ou nas palavras de pais, tios ou avós próximos. A repetição dias depois de argumentos codificados em memes e espalhados por grupos é infalível. O ciclo de desinformação segue como o rio que nasce nas montanhas e caminha em direção ao mar.
Há outro pilar fundamental para entender o que faz com que nossos pais se mantenham hipnotizados pelos delírios dos grupos bolsonaristas: a socialização. Arrumar novos amigos se torna difícil conforme envelhecemos. Nas últimas décadas também foi detectado um processo de enfraquecimento das conexões sociais coletivas, aquelas amizades que fazemos em clubes de dança, jogos de bocha e campeonatos de tranca. O melhor símbolo desse enfraquecimento das fibras que formam o tecido social é o boliche. O cientista político Robert Putnam usa o esporte para explicar a decadência das redes de relações entre pessoas no trabalho ou na vida pessoal, o chamado capital social, a partir da década de 1950: “A evidência mais estranha e desconcertante de desengajamento social que descobri é esta: mais norte-americanos estão jogando boliche hoje do que antes, mas o boliche organizado em ligas despencou na última década. Entre 1980 e 1998, o número total de jogadores de boliche aumentou 10%, enquanto o boliche de liga diminuiu 40%. A ascensão do boliche solo ameaça a subsistência dos proprietários de pistas de boliche porque aqueles que jogam em ligas consomem três vezes mais cerveja e pizza do que jogadores solitários, e o dinheiro no boliche está na cerveja e pizza, não nas bolas e nos sapatos. O significado social mais amplo, no entanto, reside na interação social e até mesmo nas conversas cívicas ocasionalmente durante a cerveja e pizza que os jogadores solitários renunciam.” Ou seja: as principais consequências não são boliches quebrando, mas a cisão nos laços sociais que mantêm sociedades coesas. O livro do Putnam, Bowling alone: The collapse and revival of American community, é surpreendentemente interessante e não se limita a boliche. Eu gostaria muito de ler como a teoria do Putnam se encaixa no Brasil.
Nos grupos políticos com desconhecidos, especialmente os bolsonaristas, suspeito que a política funciona apenas como um condutor social — mais que as mentiras, o foco parece ser a interação e o acolhimento. É uma dinâmica já comprovada em grupos QAnon, dos quais o bolsonarismo pega muito emprestado. Uma reportagem do New York Times publicada em janeiro toca nesse ponto. Valerie Gilbert é uma atriz e escritora formada em Harvard que mora no Upper East Side, uma das regiões mais elegantes e caras de Nova York. Ainda que com uma educação tradicionalíssima, Gilbert é uma apoiadora fervorosa da milícia digital QAnon. Abre aspas para a reportagem: “O que atrai a Sra. Gilbert e muitas outras pessoas ao QAnon não são apenas as teorias da conspiração. É a comunidade e o senso de missão que a comunidade oferece. Novos apoiadores do QAnon são convidados para salas de bate-papo e grupos de mensagens, e suas postagens recebem uma chuva de curtidas e retuítes. Eles fazem amigos e são informados de que não são solitários viciados no Facebook que dão zoom em fotos de paparazzi atrás de pistas, mas sim patriotas reunindo ‘informações' para uma revolução justa. Este elemento social também significa que os seguidores do QAnon provavelmente não serão persuadidos de suas crenças apenas com a lógica e a razão. ‘Essas pessoas não são membros de um culto babando e com a mente controlada. As pessoas no QAnon gostam de fazer parte. Você não vai conseguir quebrar isso com verificação de fatos já que as pessoas não querem sair', segundo Mike Rothschild, pesquisador do QAnon.”
Essa ideia de ser relevante em uma missão (“salvar o Brasil para nossos netos! !”) soa familiar para você?
O centro parece ser não o conteúdo, mas a socialização, algo corroborado por estudo publicado pela revista Nature. Três pesquisadores da Universidade de Regina, no Canadá, e do Massachusetts Institute of Technology deram um questionário para 1.825 pessoas de diferentes posições ideológicas que compartilham informações no Facebook e no Twitter. A descoberta mais chocante é que os entrevistados indicaram que sabem quando compartilham algo notoriamente falso, mas o fazem como uma forma de sinalizar pertencimento a uma comunidade e/ou agradar o círculo social onde estão inseridos. O pesquisador Rodrigo Pelegrini Ratier encontrou uma dinâmica semelhante em grupos de WhatsApp bolsonaristas: a troca de mensagens obedece a um padrão “amigo-inimigo” em que o compartilhamento de conteúdo mais extremo, esteja ele apoiado ou não na realidade, indica o pertencimento explícito ao grupo “amigo”. Qualquer crítica ou questionamento direcionada ao líder periga jogar o apoiador no outro lado do pêndulo: o de inimigo, comunista, traidor.
A mentira ou a hipérbole funcionam como cola nessa teia composta majoritariamente por pessoas sem rosto, mas com opiniões muito parecidas às suas. De novo, apelar para a checagem não pega exatamente no coração da questão. Mais que a verdade, o ponto central parece ser o pertencimento. Não teria problema nenhum se o pertencimento: 1) não ameaçasse sua própria vida, como mostra a história inicial; 2) atacasse de forma rábica a democracia; e 3) acontecesse em detrimento à socialização familiar. Para escrever esse episódio eu fui conversar com gente próxima que se sente confortável em falar sobre as consequências de se relacionar com quem vive nesse Brasil paralelo. No geral, o que ouvi foram filhos(as) frustrados(as) pela distância que a crença intransigente em delírios por parte de pais, mães, tios e tias mergulhados em grupos bolsonaristas causou.
Duas frases foram frequentes: “eu perdi contato constante com meus pais” e “eu perdi muito a admiração pelos meus pais”.
Por fim, há um outro elemento fundamental: o analfabetismo digital. Quando a internet comercial chegou ao Brasil, éramos crianças. A gente não entendia direito como aquilo funcionava, o que dirá nossos pais, criados em uma geração diferente. Eu aposto que você, criado na classe média, ouviu seus pais te alertando para não acreditar em qualquer desconhecido que lhe abordasse online, um conselho que valia também para o mundo real. É irônico perceber como o conselho não envelheceu bem, já que a raiz da dinâmica dos grupos é baseada em mentiras contadas por desconhecidos. A recente onda de golpes pelo WhatsApp fez cair uma ficha enorme em mim: há uma faixa etária que acredita em qualquer coisa que chega por mensagens desde que seja minimamente lapidada, como uma notícia escrita com o mínimo de apuro e com imagens selecionadas ou um golpe que use a foto de alguém próximo pedindo dinheiro com “um novo número”.
A junção de todos esses fatores (e, provavelmente, outros que não abordamos aqui) cria um fenômeno inverso ao processo científico. Como funciona o processo científico: é preciso raciocinar, analisar e revisar até chegar a uma conclusão. No bolsonarismo, a conclusão exige a criação de teorias amalucadas, lapidadas à exaustão conforme aponta-se erros.