Saudade da Bahia, com Caymmi e Jobim, O ARRANJO #28 (English subtitles)
Dorival Caymmi lançou em 1956 o seu maior sucesso até então, Maracangalha
O seu produtor na gravadora Odeon, Aloysio de Oliveira,
estava atrás de Caymmi para que ele lançasse outra música tão forte no ano seguinte, 57
Caymmi decepcionou o produtor, dizendo não ter nada novo com a mesma chance de impacto de Maracangalha
Como Aloysio e Caymmi eram muito amigos, o produtor se lembrou de um samba antigo
que Caymmi cantava em casa e que ainda estava inédito: Saudade da Bahia
O samba já tinha 10 anos, e foi composto de uma tacada só, de cabeça, num bar do Leblon,
na ocasião Caymmi escreveu a letra ali mesmo, pra não esquecer
Caymmi resistiu esses 10 anos a lançar o samba por motivos que ele nunca revelou
A sua biógrafa, e neta, Stella Caymmi, afirma no seu livro "Dorival Caymmi - O mar e o tempo",
que o compositor tinha resistência em mostrar a música porque seria a música que mais o revela, que mais o desnuda
E é um tanto melancólica, e mostra um lado do compositor que ele sempre procurou evitar
Mas Aloysio de Oliveira era um grande produtor, farejou o sucesso, e conseguiu dobrar as resistências de Caymmi,
que gravou esse samba que se tornou um dos maiores sucessos da carreira do baiano
Mas a gravação definitiva de Saudade da Bahia só viria anos mais tarde, no disco Caymmi visita Tom
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo
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Foi o mesmo produtor, Aloysio de Oliveira, o responsável por juntar Dorival e Caymmi e Tom Jobim em disco, em 1964
Não era a primeira vez que Aloysio juntava em disco Caymmi com um outro gênio da música brasileira,
em 1958 ele produziu o disco "Ary Caymmi Dorival Barroso"
Ary Barroso executando no piano obras de Caymmi e este cantando as músicas de Ary
O encontro só não foi perfeito porque eles não gravaram nada juntos, nem sequer se encontraram no estúdio
Já no disco "Caymmi visita Tom" os artistas realmente se encontraram no estúdio,
e Caymmi ainda levou seus filhos Nana, Dori e Danilo
E também a sua mulher Stella, que fez uma das suas únicas gravação em disco cantando "Cantiga da Noiva"
Stella fez uma exigência pra participar
"Mamãe implicava com Aloysio de Oliveira.
Papai tinha aqueles amigos, Aloysio era amigo do papai, e mamãe implicava com Aloysio
Ele disse: 'Ah, Stella vai cantar', e ela: 'Eu só canto se o Dori tocar'
Aí eu acompanhei ela na música do papai"
Nessa gravação de "Saudade da Bahia" que eu vou analisar,
Caymmi e Tom fazem um dos duos mais espetaculares da história da música brasileira
O arranjo é de Dori Caymmi, com uma contribuição especial de Tom Jobim
UM POUCO DE HISTÓRIA
Dorival Caymmi nasceu em 1914, em Salvador, Bahia, filho de Durval e Aurelina, mais conhecidos como Ioiô e Sinhá
Salvador foi a primeira capital do Brasil, mas quando Caymmi nasceu estava praticamente parada no tempo
O crescimento populacional da cidade estava estagnado desde o fim do século 19,
e a economia do estado era baseada no cultivo do cacau, que ainda usava métodos rudimentares no seu beneficiamento
Enquanto o sudeste, especialmente São Paulo, se desenvolvia a partir do café e da industrialização crescente,
a modernização de Salvador seguiu um ritmo muito lento nas primeiras décadas do século 20
Nas sacadas e nos sobrados da velha São Salvador
se criou um ambiente propício para que as tradições africanas lá desembarcadas
tivessem um tempo pra se adaptarem e se incorporarem no dia-a-dia do povo baiano
Caymmi vivenciou resquícios de uma Bahia colonial,
e convivia na sua casa com ex-escravas ou filhas delas, as mulheres de saias,
que seguiram morando na casa das famílias onde cresceram
Elas ainda falavam uma língua que misturava o português com o Iorubá,
e algumas histórias ficaram na cabeça de Caymmi e mais tarde inspiraram canções
Na música História pro Sinhozinho, conhecida pela minha geração como a música da Tia Nastácia, do Sítio do Picapau Amarelo,
Caymmi usou uma história que ele dizia ter sido contada por uma das pretas da sua infância, como ele dizia
É a história de um pai que mergulha num rio atrás de um peixe específico que o seu filho pediu
O pai mergulha algumas vezes mostrando diversos peixes pro seu filho, que sempre dizia: não, não é esse, meu pai
Até que o pai, cansado, acaba morrendo afogado - e isso era história pra ninar as crianças!
Ao contrário do que pode parecer, Caymmi não conviveu tão próximo ao mar na sua infância
Salvador seguiu o modelo de urbanização adotado por várias cidades costeiras portuguesas,
como Lisboa e o Porto, e mesmo por cidades de suas colônias, como Luanda e o Rio de Janeiro
Aproveitando as características topográficas locais, a cidade se formava em dois núcleos:
a cidade alta, onde se estruturava a cidade institucional, e a cidade baixa, destinada ao porto e ao comércio
Caymmi morava na cidade alta, próximo do Pelourinho,
e só do sótão da casa dos seus avós paternos via de longe a Baía de Todos os Santos, o mar de Itaparica
Os banhos salgados, como se dizia, ficavam para o veraneio,
quando seu Tio Nonô levava os sobrinhos para a sua casa de praia, em Itapagipe
O grande amigo de Dorival foi Zezinho, um vizinho que morava numa casa um pouco mais humilde,
na mesma rua que os Caymmi
Os dois foram amigos de uma vida toda, bem mais curta pra Zezinho, que morreu com 49 anos em 1963
Eles passavam o tempo livre juntos, percorrendo as ladeiras de Salvador,
e tinham em comum a paixão pelo cinema, pela literatura e pela música
"Zezinho era assim na minha vida o indispensável
O que eu tinha de timidez o Zezinho tinha de atrevido, de ousado, de malandro
Muito bem educado, mas muito traquinas"
Durval, pai de Dorival, era um músico amador, que tocava violão, piano e bandolim
Ele tinha mandado vir do Rio de Janeiro um violão comprado na prestigiosa casa A Guitarra de Prata, sediada na Rua da Carioca
Com muito ciúmes do instrumento,
Durval não gostou muito quando descobriu que seu filho estava tocando o seu violão escondido
E mais: disse que o filho estava tocando errado, e realmente Caymmi não tocava com a técnica, digamos, correta
Ele puxava as cordas de uma raspada só, como ele dizia, e não arpejava usando um dedo pra cada corda
Mesmo depois de ter aprendido a usar os outros dedos da mão direita,
às vezes Caymmi usava só o indicador, e assim conseguia um suingue inigualável
Os fihos dele, Dori e Danilo, se lembram de uma noite em que alguns dos maiores violonistas do Brasil,
como Baden Powell e o próprio Dori, ficaram horas tentando repetir a batida exata do Dorival - e ninguém conseguiu
Até os 17 anos, Caymmi vivia a vida urbana de Salvador,
mas nessa idade começou a frequentar nos verões uma praia distante da cidade, Itapuã
O seu inseparável amigo Zezinho tinha um irmão bem mais velho, já adulto, Antonino,
que alugava casas de pescadores em Itapuã pelos 3 meses do verão e levava toda a família,
incluindo os vizinhos e irmãos Dorival e Deraldo
Em Itapuã Caymmi tomou contato com a vida rústica dos pescadores,
a vida dura e perigosa dos que saíam pro mar em jangadas modestas
E ficou marcado pelas noites de temporal em vigília,
em que todos esperavam acordados pra ver se os pescadores voltariam do mar no dia seguinte
Conheceu personagens que estão imortalizados nas suas canções, como Capeba, personagem de João Valentão
Ou Bento, que saiu com Chico Ferreira numa jangada e a jangada voltou só
Bem próxima de Itapuã está a Lagoa do Abaeté, cercada de misticismos,
já pelo nome indígena, que quer dizer lagoa tenebrosa
Os veranistas eram aconselhados a evitar o mergulho em Abaeté,
se não pelos seus mistérios e lendas, mas também pelo risco concreto de pegar malária
Caymmi começou a tocar com Zezinho, Caymmi no violão e o amigo no cavaquinho
"E a gente tava formando um conjunto que virou os Três e Meio
Dos três e meio, comigo, Zezinho, Ioiô, que era o Eduardo Peres, que morava no Cabula,
e o irmão de Zezinho, Luiz Gonzaga, que ainda vive.
Nós fizemos um quarteto que era assim: três grandes e um pequeno"
Chegaram a se apresentar nas rádios locais, e Caymmi ganhou concursos de músicas carnavalescas,
mas ele não se profissionalizou na música em Salvador
Na verdade Caymmi estava sem rumo profissional no começo da sua vida adulta,
ele havia interrompido os estudos em 1930, durante a revolução
E tentou diversos empregos, trabalhou em jornais, tentou ser comerciante, mas nada dava muito certo
Aos 23 anos, desempregado em Salvador, ele conseguiu o apoio do pai para seguir para a então capital do Brasil, Rio de Janeiro
Lá ele tentaria fazer os estudos preparatórios para a faculdade de direito, a sua primeira opção naquele momento
Seu pai comprou uma passagem na terceira classe do navio Itapé,
mas disse ao filho que logo que chegasse no navio procurasse o capitão, que era seu amigo, e ele o alojaria na primeira classe
Durante a viagem, Caymmi se sentiu à vontade entre os passageiros da terceira classe, e não foi falar com o capitão
Nem tocou no violão durante os 3 dias em que durou a viagem,
o instrumento estava embrulhado numa forma retangular pra disfarçar que era um violão -
afinal de contas, em 1938, o instrumento ainda estava relacionado com a vagabundagem
Trazia prontas algumas das suas canções mais revolucionárias, como O Mar e Noite de Temporal
Eram as canções praieiras, um estilo que ele inventou e que se encerrou com ele: não teve seguidores
Não demorou muito tempo pra ser reconhecido no meio artístico do Rio como um cantor e compositor único, um grande inventor
Ganhou títulos, como ele dizia: virou o cantor dos mares, da Bahia
Na verdade ele desembarcou no Rio trazendo a Bahia na bagagem,
e seguiu pra sempre cantando a saudade da sua Bahia
1. MELODIA Em linhas gerais, a obra de Dorival Caymmi pode ser dividida em 3 vertentes:
as canções praieiras, os sambas sacudidos, como ele falava, e os sambas canções
Saudade da Bahia é um samba, mas não é um daqueles sambas de sotaque baiano,
como "O que é que a baiana tem" ou "O samba da minha terra"
É um samba canção, um estilo que surgiu no Rio de Janeiro nos anos 1940,
na mesma época em que surgiram as boates
Caymmi compôs diversos sambas canções antológicos, como "Marina", "Só Louco", "Dora", "Nem Eu" e muitos outros
Uma das coisas que diferenciam os sambas canções dos sambas sacudidos é o ritmo da melodia
Nos sambas mais animados a melodia costuma se apoiar mais nos tempos fracos, na síncope,
por isso se diz que os sambas normalmente têm melodias sincopadas
Já os sambas canções têm menos síncopes na melodia, ou seja, a melodia normalmente se apoia nos tempos fortes
2. ORQUESTRAÇÃO Nessa gravação de "Saudade da Bahia" o piano é do Tom Jobim, no violão Dori Caymmi,
na flauta Danilo Caymmi, Sergio Barroso no baixo e Dom Um Romão na bateria
O arranjo do Dori é muito simples, era basicamente a harmonia e uma frase de flauta tocada duas vezes, na introdução e na coda
Danilo Caymmi conta que ele e o irmão já tocavam essa música em duo em casa, e ele tinha recém começado a estudar flauta,
era um garoto de 16 anos mais preocupado com as suas provas no colégio do que com a gravação do disco
Segundo o próprio Dori, o genial na gravação é a segunda voz que o Tom criou ali no estúdio, na hora
A forma mais usada de segunda voz é aquela que vai paralela à melodia, seguindo as subidas e descidas melódicas
É assim normalmente na música pop, na música country, e também no sertanejo brasileiro
Mas o Tom criou uma melodia independente, rica,
com saltos surpreendentes e formando intervalos bem interessantes com a melodia da música
Nesse trecho, a segunda voz do Tom começa em um intervalo de segunda maior com a melodia
Como as notas são muito próximas, o Tom atrasa a sua entrada, pra amenizar choque entre as notas
Ele canta esse intervalo de segunda mas depois faz uma frase descendente, e termina a frase em terças paralelas
Na frase seguinte o choque é ainda maior, de segunda menor, um semitom
Na análise do arranjo eu vou dar uma atenção especial a essa melodia da segunda voz, e a sua relação com a melodia do Caymmi
3. A FORMA DO ARRANJO A forma de "Saudade da Bahia" é AAB, e cada parte dessas têm 16 compassos
A forma dessa gravação é introdução, segue a música toda, depois repete os dois A's
e também repete a introdução, agora fazendo o papel de coda
Jobim canta as notas do baixo e uma frase na flauta com um ritmo parecido com a melodia
Comentários no violão, junto com os acordes
A melodia fica numa nota parada e a segunda voz desce cromaticamente
No fim das frases a segunda voz normalmente faz a terça paralela à melodia
As frases que saem de um intervalo de segunda,
com a segunda voz fazendo frases descendentes enquanto a melodia fica na mesma nota
A bateria vai para o prato de condução na parte B
A segunda voz faz uma frase cromática descendente
A segunda voz vai partir da mesma nota da melodia,
mas faz uma frase descendente, em movimento contrário em relação à melodia
Agora o único uníssono nas vozes
Caymmi não canta toda a melodia, dando espaço pra segunda voz aparecer
Comentários no violão em acordes no agudo
A base é muito Bossa Nova, só o violão que não faz a batida de João Gilberto, toca de uma forma mais livre
Volta a introdução, agora como coda, a flauta na mesma região grave e contracantos do Tom
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