O Pato (João Gilberto), O ARRANJO #22 (English subtitles)
João Gilberto tinha ficado horas ensaiando a canção O Pato e quando levantou e abriu a janela para respirar o ar fresco
o seu gato se jogou pela janela por não aguentar mais ouvir aquela música
Essa é apenas mais uma das várias lendas sobre João Gilberto e um dos seus grandes sucessos, O Pato
Em Março de 1960 João Gilberto estava no estúdio gravando o seu segundo disco quando recebeu um telefonema da sua mulher, Astrud
O gato do casal, chamado de Gato, havia caído da janela, e o andar era muito alto
João abandonou a gravação e ainda levou o gato com vida ao veterinário, mas ele não resistiu
Ainda no estúdio os músicos criaram a lenda que, de tão repetida, quase virou verdade:
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo
Se você está gostando de assistir aos episódios pense na possibilidade de apoiar O ARRANJO,
e assim ajudar a que eu continue a fazer os programas
A contribuição começa com apenas 10 reais
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O Pato é uma composição de Jayme Silva e Neusa Teixeira
e foi gravada pela primeira vez por João Gilberto em seu segundo disco
A música fazia parte do repertório do grupo vocal Garotos da Lua,
um dos muitos grupos vocais que existiam no Rio de Janeiro no fim dos anos 1940
O cantor principal do conjunto, ou o crooner, como se falava na época era o pernambucano Jonas Silva,
que tinha saído de Recife em um caminhão pau-de-arara com os amigos Milton e Miguel
com destino à então capital federal, Rio de Janeiro
No caminho pararam em Salvador e dois baianos, Alvinho e Acyr, se juntaram ao grupo - estava formado o Garotos da Lua
Chegaram no Rio em 1946, exatamente no ano em que o presidente Dutra fechou os cassinos,
o que diminuiu muito o campo de trabalho para os músicos e conjuntos
Depois de um ano de muitas dificuldades foram contratados por uma rádio importante, a Rádio Tupi
Jonas Silva era um excelente crooner mas a sua voz pequena estava fora dos padrões da época
O diretor artístico da Rádio Tupi, o jornalista e compositor Antônio Maria,
achava que o grupo cantava sussurrado pra não cantar mais alto que o seu crooner,
e que então o grupo não tinha volume de som suficiente
Maria deu um ultimato: ou mudam o crooner ou serão demitidos
Um dos baianos, Alvinho, se lembrou de um cantor que ele conheceu em Salvador,
que tinha uma boa voz e cantava com um bom volume: João Gilberto
João cantou muitas vezes O Pato com os Garotos da Lua,
na rádio e em shows, mas o grupo nunca gravou a música
João gravou o samba 10 anos depois e virou um sucesso instantâneo,
o que animou o compositor Jayme Silva a mostrar outras músicas suas para João Gilberto
João ouviu mas não se animou: eram todas na mesma linha Mundo Animal: A Vaca, O Marreco, O Sapo... e nada era tão bom
Com arranjo de Tom Jobim, é a versão de O Pato gravada no disco O amor, o sorriso e a flor de João Gilberto,
de 1960 que eu vou analisar nesse vídeo
UM POUCO DE HISTORIA
A consagração definitiva da Bossa Nova começou quando a revista O Cruzeiro resolveu fazer uma grande matéria
com a música jovem, nova, que estava surgindo
O Cruzeiro era a maior revista do Brasil, com circulação nacional, vendia 700 mil exemplares por semana,
estar nas suas páginas era a glória
Para fazer a matéria a revista reuniu na casa do pianista Bené Nunes, na gávea,
todos os compositores e músicos do movimento, e convidou Ary Barroso para representar a velha guarda,
era o grande compositor do Brasil dando o seu aval para os jovens músicos
E Ary Barroso realmente gostou da Bossa Nova desde o começo, ao contrário de muitos dos seus contemporâneos,
mas era um artista da geração anterior, a que tava passando a ser considerada antiquada
No apartamento de Bené Nunes, cercado por toda a Bossa Nova, Ary perguntou: afinal, o que é Bossa Nova?
Bôscoli foi o único que respondeu, e a sua resposta ficou conhecida: Bossa Nova é um estado de espírito
Era o ano de 1959, o ano de lançamento do disco Chega de Saudade, de João Gilberto,
considerado o marco de lançamento da Bossa Nova
A partir desse disco João começou a fazer shows e ganhar algum dinheiro e sair da sua condição de eterno durango
Roberto Menescal conta que quando conheceu João, em 1957,
ele morava em um quarto alugado no apartamento de uma senhora em copacabana,
mas ele dividia o quarto com mais 5 caras
Morou ainda de favor na casa de amigos como Sérgio Ricardo, Tito Madi e Ronaldo Bôscoli
João foi parar no apartamento de Bôscoli depois de brigar com Tito Madi e ficar sem teto
Bôscoli já tinha ouvido falar em João Gilberto, diziam que era um cara maluco, que já tinha sido internado como louco,
usava cabelo grande e barba, e só saía de noite, meio vampiro,
mas que tocava um violão bem diferente e cantava diferente também
Mas o João que bateu na porta do apartamento não correspondia a essa descrição:
cabelo cortado, barba feita e, sim, um violão
Passou a noite inteira tocando e todos no apartamento ficaram encantados
Quando amanheceu o dia, já era mais um morador do apartamento
Um quarto e sala, que já abrigava, além do Bôscoli, Miéle, Chico Feitosa e um amigo deles
A vida de João começou a mudar também quando ele conheceu uma das meninas da turma que frequentava o apartamento da Nara Leão, Astrud
Astrud a princípio não se interessou por João Gilberto,
disse pro Ronaldo Bôscoli que ele não fazia o tipo dela, ela gostava de louros altos e fortes
Mas a resistência durou só até ele começar a jogar o charme pra cima dela e a dizer que ela deveria ser cantora
- o que realmente era um desejo secreto dela
Se casaram em pouco tempo, e aos 28 anos João Gilberto pagaria o primeiro aluguel da sua vida
O disco Chega de Saudade foi um marco para a Bossa Nova, mas não foi um disco pensado como um todo
Primeiro foi gravado um compacto com Chega de Saudade e Bim Bom,
depois outro compacto com Desafinado e Hôba-la-lá e só depois gravaram as outras músicas para preencher o resto do disco
Mas para o segundo disco Tom e João resolveram pensar todo o repertório do disco antes,
equilibrar entre músicas inéditas e as regravações que João fazia de canções praticamente desconhecidas
Era verão de 1960 e Tom estaria no sítio da família, na região serrana do Rio,
e acharam uma boa ideia o João subir a serra para eles trabalharem tranquilos
Choveu muito nesse verão, e Tom imaginou que João não conseguiria chegar, o caminho era de estrada de terra
Até que numa noite chega um trator rebocando o táxi com João e Astrud, que tinha atolado na estrada
O detalhe é que o táxi tinha atolado quando o João pediu pra parar porque tinha visto uma jararacuçu,
uma cobra enorme, e tinha resolvido matá-la - outros tempos, nada ecológicos
Quando chegou no sítio, abriu o porta-malas do carro pra mostrar pras crianças, os filhos do Tom, a linda cobra morta
Sobre essa temporada, Tom escreveu na contracapa do disco:
"Fugimos da sala onde brincavam as crianças presas pela chuva , fomos para um dos quartos vazios,
com forro de madeira, que aliás dá boa acústica
Lá, longe da cidade e do telefone, trabalhamos sossegados uns 10 dias"
No fim do texto, Jobim escreve: P.S. - as crianças adoraram o Pato
Quando ainda morava no minúsculo apartamento de Bôscoli
João se lembrou desse samba que cantava com o grupo Garotos da Lua
Nas palavras do jornalista Sérgio Cabral, a música era uma bobagem,
mas que permitia João Gilberto dar um show de ritmo, na voz e no violão
Para desespero de Bôscoli e dos demais moradores do apartamento,
João ensaiou a música exaustivamente, por seis meses
Uma das coisas que ele ensaiava era a emissão da sua voz:
ele saía do apartamento e pedia pro Bôscoli ficar na porta enquanto ele se afastava
cantando pra saber até que distância a voz ainda ficava audível sem aumentar o volume
Segundo o músico e professor de linguística Luiz Tatit,
João priorizava a sonoridade do texto em detrimento do sentido, da semântica
E isso fica claro nas próprias composições do João, Bim Bom e Hôba-la-lá,
em que as letras são quase surrealistas, cheias de onomatopeias criadas por João
E alcança o auge na sua canção Unidú, em que não há letra
Então uma letra quase infantil como a de O Pato não importava,
o que ele queira era exercitar toda a sua capacidade de sincopar e dividir de forma diferente
Carlos Lyra escreveu no seu livro "Eu & a Bossa" que até o início dos anos 1960 a Bossa Nova se caracterizou pela busca da forma, na melodia, na letra, na harmonia, no ritmo e na interpretação
O conteúdo era o mais lírico possível, era a fase do amor, do sorriso e da flor
Mas na sequência dos anos 60 outros tópicos surgiram com força,
como nacionalismo, realidade brasileira, justiça social e consciência política
Ainda segundo Carlos Lyra, se delinearam duas facções:
uma fiel à filosofia da forma e a outra comprometida com o conteúdo
Nesse momento, perto do golpe de 1964, Menescal e Bôscoli estavam no auge,
tudo o que compunham era gravado, segundo Menescal até as músicas ruins eram gravadas
"O Ronaldo um dia me chamou e falou, Beto, vamos tomar um café juntos
E falou 'olha, a barra está pesada', e eu digo: aconteceu alguma coisa com você?
'Não, está pesado é o clima que está na música
É música que na verdade nem importa muito a música, importa mais a letra do que a música,
que são as músicas de protesto
E nós não temos nada a ver com isso, nós somos dois alienados totais a isso que está acontecendo
A gente vive em Copacabana, na praia, então acho que a gente tinha que dar uma parada'
Mas Ronaldo, para e fazer o que? Eu vivo disso, de tocar e fazer as nossas músicas
'Beto, temos que parar, vamos dar uma hibernada, acho que daqui a dois anos a gente pode voltar a fazer as coisas'
Os dois anos viraram vinte"
Um momento de radicalização do conteúdo aconteceu no festival da canção de 1968,
com a música Caminhando e cantando, de Geraldo Vandré
A música é uma quase não-música, o que importava ali era a letra, a mensagem
A música tem dois acordes, e não importa mais o arranjo elaborado,
então é acompanhado só por um violão tocado propositalmente de forma simplória
Mas logo se encontrou o equilíbrio: da junção da forma com o conteúdo nasceu a MPB, a Música Popular Brasileira,
que abriu caminho pra chegada de uma geração incrível, de Chico Buarque, Caetano, Gil,
Francis Hime, Milton Nascimento, Dori Caymmi, Joyce, Edu Lobo e tantos outros
1. MELODIA O pato é um samba, e como todo samba tem uma melodia sincopada, ou seja,
as notas caem nos tempos fracos do compasso - é o balanço que caracteriza o samba
Mas algumas frases da música se aproximam da linguagem do choro,
com uma sequência grande de semicolcheias, sem síncopes
Outra característica marcante de o pato é o seu refrão: parece ser feito à medida para um grupo vocal,
como inclusive a letra sugere antes: pato, marreco, ganso e cisne ensaiando o vocal cantando "quém"
São notas repetidas em ataques curtos e sincopados
Com as vozes harmonizadas em um grupo vocal, soariam mais ou menos assim:
2. ORQUESTRAÇÃO João Gilberto revolucionou a forma de se tocar samba no violão, criou um estilo que foi seguido e até hoje é copiado,
mas ele também mudou a forma de se tocar um outro instrumento
Segundo o pesquisador Zuza Homem de Mello, João Gilberto interferiu decisivamente no modo de o baterista tocar samba
Na sua primeira gravação ele pediu para desmontarem toda a bateria e só ficou a caixa e os pratos de contratempo
Para tocar a caixa só escovinhas, ou vassouras, nada de baquetas,
e como o João gostava de uma levada mais cheia nas escovinhas o baterista dos seus primeiros disco, Juquinha,
usava as duas mãos pra fazer essa levada
Mas não sobrava mão pra tocar o aro e fazer o tec-tec-tec do ritmo,
então o percussionista Guarany usou tamboretes
que Aloysio de Oliveira tinha trazido dos estados unidos pra fazer o ritmo que João Gilberto indicava
"João não aceitava percussão nenhuma nas gravações dele. E então o que fazer? Vamos criar alguma coisa,
O Guarany pegou um instrumento chamado caixeta, que são tubos com couro em cima e fez aquele pac, pac, pac, o João adorou
Isso marca muito, qualquer bateirista do mundo vai tocar bossa nova fazendo isso,
e ninguém nunca falou que foi o Guarany que criou isso dentro do estúdio assim de supetão, e foi o que ficou, não teve jeito"
Além do ritmo com Juquinha e Guarany a gravação conta ainda com o violão do João Gilberto, o piano de Tom Jobim
e mais flauta, oboé, sax alto, clarone e um quarteto de violinos
Sempre usados com o máximo de economia, é claro, a marca registrada da orquestração da bossa nova
3. A FORMA DO ARRANJO A forma de o pato é AABCD, todas as partes com 8 compassos menos a parte D, que é o refrão, que tem 6 compassos
Nessa gravação, sucinta como eram as gravações do início da bossa nova, a música acontece duas vezes
Era uma busca estética, ou seja, pensando na forma, que as orquestrações fossem muito simples,
segundo João Gilberto as músicas pré bossa nova tinham violinos demais, orquestra demais
A gravação de O Pato não tem nem introdução, é o canto direto
Percebam a sonoridade da bateria com escovas e o ritmo na caixeta
Resposta do clarone no grave
Oboé fazendo uma segunda voz no "quém quém"
E agora acordes de violinos com a voz mais aguda em 3 notas descendentes cromáticas
Flauta e piano em uníssono em uma frase sincopada
Resposta no clarone
Sax e flauta tocam a mesma melodia com duas oitavas de diferença
Comentário do clarone cromático ascendente
Flauta e oboé em uníssono e sax uma terça abaixo
A resposta do clarone faz uma quinta justa descendente até a tônica do acorde
Os acordes dos violinos estão em posição fechada, as notas bem próximas umas das outras
Essa resposta do clarone também desce uma quinta justa até a tônica do acorde
Na coda, as respostas do clarone e a cama harmônica dos outros sopros
Sax em notas cromáticas seguindo a harmonia e flauta e oboé sempre nas mesmas notas
Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal,
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Muito obrigado, até uma próxima