O Nosso Olhar (Sérgio Ricardo), O ARRANJO #12
O garoto João Lutfi adorava ouvir o pai tocar alaúde
Abdala Lutfi era imigrante sírio, e tinha um comércio na então pequena cidade de Marília,
no interior do estado de São Paulo
Não que o pai do menino tocasse sempre o alaúde, era raro
Mas passou a tocar cada vez menos quando
começou a relacionar o fato dele dedilhar o instrumento com uma notícia ruim,
normalmente a morte de uma pessoa querida longe, na sua Síria natal
Quando Abdala recebeu a notícia da morte do seu pai,
um tempo depois de tocar, não teve dúvidas:
quebrou o alaúde e fez uma fogueira no quintal,
para tristeza dele e do pequeno João, de oito anos
João cresceu e adotou o nome artístico de Sergio Ricardo,
e ao longo de sua vida foi pianista, ator, cantor, cineasta, pintor
Um grande artista brasileiro
que ficou marcado por ter reagido às vaias que o impediam de cantar a sua música em um festival...
quebrando o seu violão
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador,
esse é O ARRANJO, sejam bem vindos
A canção O nosso olhar foi composta no fim dos anos 1950
por Sergio Ricardo em sua fase romântica
Caetano Veloso escreveu que adorava essa música,
que marcou o fim da sua adolescência
Dori Caymmi disse que se impressionou muito com essa música também por essa época,
e apelidou a música de "viu", que é a primeira palavra da canção
A palavra "viu" era exatamente a palavra que João Gilberto não cantava
quando interpretava essa música nos seus shows
Ligado ao movimento da Bossa Nova desde o seu começo,
Sergio foi um dos primeiros artistas a gravar um LP do gênero,
com o nome Não gosto mais de mim - A bossa romântica de Sergio Ricardo, em 1960
O disco só tinha composições suas, fato inédito no início da Bossa Nova,
na época nenhum compositor do gênero gravou um disco só com composições próprias,
nem Carlos Lyra, nem Tom Jobim
Com arranjos do grande maestro e arranjador Lindolfo Gaya,
é essa versão de O Nosso Olhar que eu vou analisar nesse vídeo
UM POUCO DE HISTÓRIA
Quando Sergio Ricardo nasceu a sua cidade natal, Marília,
só tinha três anos de existência, ele literalmente cresceu com a cidade
Quando tinha 8 anos foi fundado o Conservatório Musical de Marília,
e ele foi estudar piano clássico
Com 17 anos se mudou para a cidade de São Vicente, litoral do estado de São Paulo,
para trabalhar na rádio de um tio, irmão da sua mãe
Um ano depois estava no Rio de Janeiro, trabalhando em outra rádio da família
Com os seus contatos no meio artístico fez teste para fazer um papel em um filme e,
para sua surpresa, passou
O filme não foi pra frente, mas ele chamou a atenção de um diretor de TV
que o convidou para fazer uma novela,
e, aproveitando a sua boa pinta, foi ser o galã
Mas faltava um obstáculo pra atravessar
"Aí fiz o teste, passei, aí na hora do contrato,
que a gente tinha que assinar um contrato,
ele disse assim, só tem uma coisa: com esse nome João Lutfi não dá
Porque você vai fazer galãzinho de novela, essa coisa,
com esse nome não pega bem"
Na época estava muito em voga nomes compostos, e o escolhido foi Sergio Ricardo
Mas a música seguia sendo a sua paixão principal e um amigo pianista,
Newton Mendonça, futuro compositor da Bossa Nova,
disse que estava abrindo uma vaga para pianista numa boate no posto 5, em Copacabana
O pianista titular da casa,
o jovem Antônio Carlos Jobim, estava de saída e Sergio foi lá fazer um teste
Com sua técnica virtuosística no piano, fruto dos seus estudos de piano clássico,
Sérgio impressionou Jobim, que referendou a sua contratação
"Aí ele olhou e disse assim: o seu piano é muito bom,
eu, se tivesse essa mão, estava na Califórnia,
me lembro muito bem dessa frase"
Mas Jobim chamou a atenção que ele deveria estudar mais harmonia,
e pra exemplificar, sentou no piano e mostrou a sua versão para Feitiço da Vila,
de Noel Rosa, com uma harmonia bem diferente, novos acordes
"Eu olhei pra mim mesmo e falei, tenho que estudar muito ainda
Imediatamente fui procurar professores para elaborar o meu trabalho harmônico"
Desse mergulho nas harmonias modernas surge o compositor Sergio Ricardo
Grava um disco pela gravadora Continental, Dançante número 1,
e começa a ter o seu nome falado no meio musical
Dick Farney, o cantor brasileiro mais moderno da época,
ouviu uma música de Sergio e gostou, mas fez um comentário:
"Olha, eu aqui mudaria esse acorde, por aquele outro
E eu idiota, garoto bobo, eu digo não, na minha música ninguém vai mexer"
Dick Farney não gravou, mas outra estrela da música brasileira, Maysa, o gravou
Bouquet de Izabel fez parte do segundo disco da cantora, de 1958
Nesse mesmo ano conhece João Gilberto e vira um grande amigo do baiano,
que ainda estava tentando impulsionar a sua carreira
O violão de João causa grande impacto em Sergio Ricardo
- aliás, uma história comum a 9 entre 10 jovens músicos da época,
e ele começa a tocar violão
Pouco tempo depois, trabalhando como apresentador na TV Continental do Rio,
conheceu Luís Carlos Miéle, diretor de estúdio da emissora,
que o levou para conhecer uma turma nova, jovem,
que estava fazendo uma música diferente
Foi convidado a ir no famoso apartamento da Nara Leão, ponto de encontro dessa nova geração
e lá descobriu que o ídolo dessa garotada era o seu amigo, João Gilberto
Com o dinheiro que ganhou na sua época Bossa Nova Sergio Ricardo fez o seu primeiro filme,
um curta metragem chamado Menino da Calça branca, filmado em uma favela do Rio de Janeiro
e que foi montado pelo grande cineasta Nelson Pereira dos Santos
Sergio Ricardo começou a questionar as temáticas que a Bossa Nova abordava,
sempre com uma visão da classe média e da zona sul do Rio de Janeiro
O seu olhar se virou para as pessoas menos favorecidas,
que moravam nas favelas, nas periferias
Passou a enxergar uma distância entre a sua visão social e política
e a música que ele estava fazendo
Dessa reflexão, dele e de outros como Carlos Lyra,
surge uma dissidência na Bossa Nova, e aparece a canção de protesto
Compôs a música Beto bom de bola, contando a história de um jogador de futebol,
e era uma crítica aos cartolas, aos dirigentes do esporte
Segundo o compositor, foi inspirada na história de Garrincha
A música participou do festival da TV Record de 1967,
mas ele não conseguiu apresentá-la até o fim
Recebeu uma vaia desproporcional e, até certo ponto, incompreensível
"Tinha microfones pendurados na plateia
e houve uma manipulação no botão
Qualquer um ali que fosse vaiado,
precisava do show, né?
Inclusive o cara do som explicou, a gente conseguiu colocar um microfone no centro
e manipulávamos vaias ou aplausos"
"Quando a gente tava fazendo aquilo, o objetivo era fazer um bom programa de televisão
O festival nada mais era do que um programa de televisão"
"Eu sempre achei que os festivais poderiam ser organizados como os espetáculos de luta livre
Você vai perguntar, como um espetáculo de luta livre?
Claro, tem que ter o mocinho, tem que ter o bandido, o pai da moça..."
"Vocês ganharam, vocês ganharam"
1. MELODIA Sergio Ricardo era um compositor muito versátil,
compôs sambas próximos aos sambas de morro, sambas bossa nova,
repentes, baiões, canções praieiras, todo tipo de música brasileira,
e até músicas de modas de viola, como na trilha de Deus e o Diabo na terra do sol
Mas podia ser um compositor de melodias líricas, como O Nosso Olhar
Com uma melodia basicamente diatônica, ou seja, dentro da escala do tom da música,
o compositor surpreende o ouvinte com resoluções melódicas e harmônicas inesperadas
No fim da primeira parte tem um acorde estranho na tonalidade da música
e quando ele aparece é como uma janela que se abre, é como se entrasse luz
O tom da música é dó maior,
e o acorde a que eu me refiro é um lá com sétima maior,
bem distante do tom original
Esse efeito é ainda potencializado pelo acorde anterior, sol menor com sétima,
também estranho ao tom, um acorde "escuro", nesse contexto da música
E como é mais um caso de casamento perfeito entre letra e música,
que caracteriza uma grande canção, a letra contribui para esse efeito
"Que a noite fazia..." - o acorde escuro -
"pelo nosso amor" - fez-se a luz
2. ORQUESTRAÇÃO O maestro Lindolfo Gaya é, seguramente,
um dos maiores arranjadores da música brasileira do século vinte
Trabalhou com os maiores nomes da música brasileira entre os anos 1950 e 70,
de Dick Farney a Chico Buarque
Para o arranjo de O Nosso Olhar ele escreveu para:
flauta, oboé, clarinete, clarone, sax alto, trompete e trombone,
além da base, com piano, baixo, guitarra, bateria e percussão
Não é uma gravação com a sonoridade da Bossa Nova,
até porque de uma certa forma a estética bossanovística ainda estava sendo criada
A utilização da guitarra como acompanhamento, no lugar do violão,
soa estranho, ainda mais fazendo uma levada pré-Bossa Nova,
mais próxima de samba-canção
Mas a voz límpida e, nessa gravação, contida de Sergio Ricardo,
junto com a harmonia moderna, criam a atmosfera intimista, tão Bossa Nova
3. A FORMA DO ARRANJO A forma de O Nosso Olhar é AABC,
e cada parte da música tem 8 compassos
Nessa gravação temos uma introdução de 4 compassos
e a música ainda repete a parte B, com um instrumental,
com o canto voltando na parte C e seguindo para a coda
O trompete nessa gravação usa uma surdina chamada Harmon
As surdinas são usadas para modificar o timbre do instrumento,
e elas também diminuem o volume do instrumento, o som fica mais baixo
A surdina Harmon foi muito usada pelo trompetista Miles Davis, virou uma marca dele
A introdução nessa gravação começa com o solo do trompete com surdina,
com uma cama harmônica de sopros no grave
O piano é usado de modo bem comedido, bem bossa nova
Uma frase nos sopros a 4 vozes para a repetição da parte A
Na volta do A temos respostas do oboé
e da flauta
Na parte B os contrapontos, as frases de resposta
serão na flauta e no oboé, em oitavas,
com cama harmônica dos outros sopros
Na parte C as respostas são do trompete com surdina
O piano aparece em terças
A melodia da parte B instrumental é executada a 4 vozes
pelo sax alto, clarinete, oboé e flauta
Uma frase com sentido ascendente no trompete para a volta do canto
Dá pra perceber como a levada da guitarra não é a de Bossa Nova,
mas como o piano, com comentários sutis, é muito Bossa Nova
A resolução com acorde meio tom acima e frase de flauta e oboé
E o acorde no modo lídio com comentário do trompete
Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal,
E até a próxima, muito obrigado
Vou cantar uma música de meu amigo Sérgio Ricardo
Eu acho muito bonita essa música
Sérgio é paulista de Marília