Coisa Mais Linda, O ARRANJO, #10 (English subtitles)
Em um dia de 1960 o jovem compositor Carlos Lyra resolve ligar para Vinícius de Moraes,
pensando em virar parceiro do poeta
Alô, Vinicius, aqui é Carlos Lyra
Vinicius, que tinha mania de falar tudo no diminutivo, respondeu:
Ô Carlinhos, eu tenho ouvido falar muito de você, conta aí, o que vc quer de mim
Lyra deu uma resposta precisa, foi como se tivesse usado a senha exata
"E eu, pego de surpresa, falei: Ô Vinicius, eu quero umas letrinhas!
Entrei nos diminutivos também e caí nas graças dele: vem já pra minha casa agora!"
Carlos Lyra chegou com o violão na casa do poeta,
que morava no Parque Guinle, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro
Lyra estava acostumado a compor com Ronaldo Bôscoli, os dois juntos,
a letra nascendo na hora, ele acompanhando tudo
Mas Vinicius falou: olha, tá vendo esse gravadorzinho?
Grava as suas musiquinhas, aí depois pode ir pra casa,
me dá uma semaninha que eu boto letrinha em tudo
Lyra ficou meio cabreiro,
mas gravou nada menos do que 11 músicas para Vinicius colocar letra
Uma semana depois toca o telefone:
Alô, parcerinho? Pode vir aqui em casa, tá tudo pronto!
No caminho até a casa do poeta, ele ficou imaginando que seria impossível
ele ter colocado letra em todas as músicas
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem-vindo
Coisa mais linda faz parte da primeira leva de músicas da parceria Carlos Lyra e Vinicius de Moraes
Na semana seguinte, quando Lyra voltou ao apartamento do poeta
para conhecer as letras dele, ele se surpreendeu
era cada uma melhor do que a outra
Dois grandes clássicos da música brasileira estavam nessa primeira leva: Você e eu e Coisa mais linda
Essas duas músicas fazem parte do terceiro disco de João Gilberto, gravado em 1961
Com arranjo de Tom Jobim, é essa gravação de Coisa mais linda que eu vou analisar nesse vídeo
A BIT OF HISTORY
O poeta Vinicius de Moraes foi batizado com o nome Marcus Vinitius da Cruz de Mello Moraes,
assim com T mesmo
Seu pai, Clodoaldo, era um estudioso do latim
e seu filho ainda nasceu no ano do lançamento do filme Quo vadis,
cujo protagonista era Marcus Vinitius
Vinicius se formou em direito, mas foi poeta, crítico de cinema, músico, jornalista, dramaturgo,
diplomata, boêmio e, dizem,
um grande conquistador, só casamentos foram 9
O grande jornalista Sergio Porto, que usava o pseudônimo de Stanilslaw Ponte Preta,
disse, a respeito das várias facetas de Vinícius,
que se ele fosse um só o seu nome seria, então, Viniciu de Moral
Causava mesmo inveja a seus colegas poetas, como seu contemporâneo Carlos Drummond de Andrade,
que escreveu: "Eu queria ter sido Vinicius de Moraes"
"Sempre que eu me lembro do Vinicius ele tá rindo
Eu evoco ele de vez em quando"
Nenhum outro poeta brasileiro viveu como ele o que os românticos chamavam de "vida de poeta",
e nenhum outro da sua geração conseguiu trafegar com tanto êxito entre o erudito e o popular,
entre a alta literatura e a música de rádio
Juntou morro e asfalto, poesia com samba e podia dizer, com propriedade:
"O branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô, Saravá!"
Lançou os seus primeiros livros de poesia nos anos 1930,
e na década seguinte se especializou em sonetos
"Quando eu publiquei o meu primeiro livro, eu publiquei muito moço,
eu tinha 19 anos, foi em 1933,
fazia uma poesia muito esotérica, meio mística e tal
Depois mais tarde, com a vida e com a experiência,
houve uma aproximação da realidade, do cotidiano"
Mas começou a ficar realmente conhecido
quando escreveu uma adaptação do mito grego de Orfeu e Eurídice para o teatro,
a peça Orfeu da Conceição
Vinícius contava que a inspiração veio do seu costume de frequentar favelas
e centros de macumba no Rio de Janeiro,
e pareceu pra ele que os negros cariocas seriam como os gregos,
marcados pelo sentimento dionsíaco da vida
Dionísio, como sabemos,
é o deus das festas, dos vinhos, da arte, das celebrações religiosas
Para compor as músicas da peça ele aceita a sugestão do seu cunhado à época,
que indica o jovem maestro e compositor Antônio Carlos Jobim
Começam a compor juntos,
e depois de um início de muita cerimônia e pouca intimidade entre eles,
as músicas começam a surgir em profusão, sempre com muita qualidade:
Se todos fossem iguais a você, Eu sei que vou te amar, A felicidade, e muitas outras
Foram tantas que foram reunidas em um disco da cantora Elizeth Cardoso,
Canção do amor demais, só com canções da dupla
Vinícius escreveu na contracapa desse disco o que ele considerava ser a chave dessa parceria:
Tom Jobim acreditava na poesia da música, assim como ele, Vinicius,
acreditava na música da poesia
Tom e Vinicius passaram a ser uma espécie de gurus da geração que surgiu com a Bossa Nova,
de Carlos Lyra e Roberto Menescal
"Gostoso de conviver, e muito professor da gente, de nós todos"
E uma espécie de pais da geração seguinte
"Enquanto que com o Tom a gente tinha um pouco uma relação meio de pais e filhos, filhos e filhas,
com o Vinicius era impossível ter uma figura paterna, porque ele era muito...
ele entrava no clima da gente, ele virava criança, ele era muito moleque"
Quando Vinicius começou a trabalhar com o Tom ele não era especialmente um letrista experiente,
tinha feito pouquíssimas músicas até então
Com o sucesso das suas canções com Tom
começa a ser requisitado por outros compositores para ser parceiro
Nesse momento Carlos Lyra procura o poeta e vira o seu parceirinho
"À benção Carlinhos Lyra, parceirinho 100%,
você que une ação ao sentimento e ao pensamento, sua benção, meu parceiro"
O primeiro de uma leva que incluiria depois Baden Powell,
Edu Lobo, Chico Buarque, Toquinho e muitos outros
1. MELODY Tom Jobim escreveu o prefácio do songbook de Carlos Lyra editado por Almir Chediak,
o homem que criou os songbooks brasileiros ainda na década de 1980
Nesse texto Tom destaca alguma das características de Lyra como compositor:
"grande melodista, rei do ritmo, da síncope, do balanço,
romântico de derramada ternura, nunca piegas, lacrimoso, açucarado"
A melodia de Coisa mais linda se encaixa nesse último comentário,
é derramadamente romântica, mas nunca piegas
Se aproxima muito da forma de um samba-canção, seria assim um samba canção ensolarado
E a letra de Vinicius colabora para o clima bossa nova prevalecer sobre o samba-canção,
com uma letra positiva, afirmativa,
ao contrário das letras de sambas-canções, normalmente mais sofridas
É interessante notar que na letra não tem o verso Coisa mais linda, e sim Coisa mais bonita
Não dá pra saber porque pro título os compositores optaram por Coisa mais linda,
mas o fato é que Vinicius gostou dessa frase,
tanto que no ano seguinte compôs talvez a sua música mais conhecida,
Garota de Ipanema, e a coisa mais linda tava lá na letra:
"Olha que coisa mais linda mais cheia de graça
2. ORQUESTRATION Os 3 discos que João Gilberto gravou em três anos seguidos,
1959, 60 e 61, são considerados a bíblia da Bossa Nova
Nesses discos João vai refinando o seu canto, o seu estilo,
sempre misturando novíssimas canções de Jobim, Vinícius, Carlos Lyra, Bôscoli e Menescal,
ou seja, a primeira geração da Bossa Nova,
com sambas antigos, da era de ouro da rádio
Algumas músicas de compositores bem conhecidos,
como Dorival Caymmi, Ary Barroso e Geraldo Pereira
e outros sambas de compositores menos conhecidos
como Marino Pinto, Jayme Silva e Roberto Guimarães
Os dois primeiros discos foram gravados com a produção e arranjos de Tom Jobim
e a direção artística de Aloysio de Oliveira
Mas nesse seu terceiro e último disco para a Odeon,
João começou a trabalhar sem os dois:
Aloysio já tinha saído da empresa pra fundar a sua própria gravadora, a Elenco,
e a sua relação com Tom Jobim tava péssima
João achava que Tom não tinha paciência,
e nos outros discos Jobim contava com Aloysio pra ajudá-lo nos atritos com João
João então começou a trabalhar nos arranjos com o grande músico Walter Wanderley
Ele na verdade tentava passar para Wanderley o que ele queria nos arranjos
Por exemplo, para a introdução de O barquinho
ele queria um som no órgão que simulasse o apito de um navio
Mas o esquema de trabalho não funcionou,
o resultado não tava agradando João Gilberto,
e ele resolveu interromper as gravações do disco
As gravações ficaram paradas por cinco meses,
e só foram retomadas quando Tom Jobim enfim resolveu aceitar trabalhar e terminar o disco,
fazendo arranjos e a produção
Nas palavras do escritor Ruy Castro no livro "Chega de saudade",
"Tom e João pareciam não conseguir o que mais queriam na vida:
livrar-se um do outro"
Para a orquestração de Coisa mais linda,
Jobim usou uma flauta, uma trompa e um pequeno naipe de violinos,
além do violão de João, bateria e percussão
Ah, e a questão da introdução de O barquinho:
o "apito do navio" foi resolvido por Jobim com 3 trombones e um sax alto
3. A FORMA DO ARRANJO Coisa mais linda é uma canção em 3 partes, ABC,
cada parte com um tamanho diferente
A parte A tem 16 compassos,
a parte B tem 20 e a parte C 14 compassos
Nessa gravação o arranjador Tom Jobim
fez uma introdução de 16 compassos com uma variação da melodia
e um intermezzo também de 16 compassos tocando a melodia da parte A
Depois desse instrumental a música vai direto pra parte C,
e na parte C tem uma curiosidade:
o João nunca canta a letra inteira, ele deixa de cantar os últimos 4 versos da canção
Carlos Lyra fez a sua primeira gravação dessa música num andamento bem mais rápido:
Mas parece que o João encontra o andamento ideal para a canção,
dando aquele toque de samba canção que eu falei antes
A introdução tem aquela variação da melodia na flauta bem no começo
e depois desenvolve uma melodia bem sincopada,
usando muito o cromatismo, ou seja,
as notas andando em intervalos de meio tom em meio tom
Na parte B os violinos fazem uma frase descendente cromática,
descendo de meio em meio tom,
com esse floreio no meio da frase
Uma intervenção da flauta dobrada com o piano
como preparação para a parte C
Na parte C tem outro começo de frase descendente cromática nos violinos
e depois uma espécie de pergunta e resposta cromática nos violinos,
a pergunta mais no grave e a resposta mais no agudo
A parte instrumental tem os violinos fazendo a melodia da parte A
e a trompa fazendo um contracanto
em frases com sentido descendente,
às vezes junto com o piano
E a flauta dobrando o piano e o violão,
bem sincopados, no contratempo
Na volta para a parte C
os violinos fazem a mesma frase descendente cromática que fizeram na parte B
Na coda, 3 notas dos violinos no grave
e depois a flauta fica repetindo duas notas,
lá e si, no fade out
Esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal e até uma próxima, obrigado
"Era um negócio assim, tinha um apresentador chamado Blota Jr., que falava: a palavra é...
Aí dizia uma palavra e você apertava o botão, quem apertava antes ia lá e cantava
uma música que tivesse essa palavra
Tem uma história engraçada, essa é muito boa, é do Vinicius
Fomos pro aeroporto e a caminho de São Paulo eu fui explicando, Vinicius, é o seguinte...
O braço dele não dava, aí quando ele chegava, nunca ele apertava o botão
A palavra é... garota! Ele apertou
Aí, feliz da vida, foi andando até o microfone e começou a cantar:
Olha que coisa bonita... é ela menina que vem...
Ah, porque estou tão sozinho...
No meio da música ele se dá conta:
não tem garota,
Garota de Ipanema não tem a palavra garota