5 momentos que definem legado de Angela Merkel na Alemanha
No dia 22 de novembro de 2005, o parlamento alemão elegia a primeira mulher pra ocupar
o cargo político mais alto do país. Após crescer sob o regime comunista da
Alemanha Oriental, se formar em física e virar doutora em química quântica,
Angela Merkel se tornava chanceler. Talvez você lembre dela por causa da
mãozinha, ou simplesmente porque ela está no noticiário internacional há bastante tempo
São 16 anos no poder, um ciclo que se encerra em 2021
Em quatro mandatos, foi uma crise atrás da outra: um baque no sistema financeiro global em 2008,
as ameaças de dissolução da União Europeia, a grande onda migratória que marchou Europa
adentro em 2015, a pandemia de covid-19. Eu sou Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil,
e nesse vídeo falo sobre 5 momentos que definem o legado de Angela Merkel
Mas antes de chegar lá, vamos tentar explicar o estilo Merkel de liderança,
fundamental pra entender o que vem depois
Se internacionalmente ela se consolidou como principal líder da Europa,
dentro da Alemanha a chanceler viu sua popularidade oscilar nesses 16 anos
Já disseram que ela fazia parte do eleitorado dormir: é econômica com as
palavras e faz discursos em tom monocórdico. A falta de carisma teria contribuído para
alimentar o desinteresse dos alemães pela política e explicaria em parte porque, em 2009 e 2013,
a presença dos eleitores nas urnas atingiu mínimas históricas desde a fundação da República
De acordo com o think tank Bertelsmann Stiftung, um percentual em torno de 70%,
o menor observado desde 1949. Esse estilo peculiar da Merkel,
aliás, virou até verbo, usado informalmente entre os alemães: “zu merkeln” significa algo
como não ter uma opinião contundente sobre determinado assunto, ser passivo, hesitante
Características que, na política, podem ser virtudes ou defeitos, a depender da situação
A cientista política Ursula Münch, diretora da Academia de Educação Política em Tutzing,
na Baviera, com quem eu conversei, disse que, com o tempo, isso acabou sendo uma vantagem
A ideia é que, se Merkel não empolga, também não desperta grande rejeição
Assim, seus apoiadores iam às urnas, enquanto parte do eleitorado preferia ficar em casa porque
“não seria tão ruim” se ela vencesse mais uma vez
Isso fortaleceu a imagem de líder confiável,
especialmente agora, durante a pandemia – mas falamos disso no fim do vídeo
E tem outra palavra em alemão importante pra entender a longevidade de Merkel no cargo:
“Mutti”, algo como mãezinha, apelido que ela ganhou alguns anos depois de virar chanceler
É difícil interpretar essa palavra no contexto da política alemã
Tem gente que acha que não é exatamente um elogio, outros falam que é respeitoso
O experiente cientista político alemão Gero Neugebauer, da Universidade Livre
de Berlim, nos ajuda a entender:
Bom, mas fato é que o estilo único
de Merkel permitiu que ela atravessasse temas delicados para qualquer político
e mudasse de opinião sem necessariamente ferir sua figura pública, o que nos leva finalmente ao
primeiro momento que marcaram sua liderança: o fim do uso de energia nuclear da Alemanha
Em 2011, após o tsunami no Pacífico e o desastre nuclear em Fukushima, no Japão,
Merkel recuou no que até então era sua posição e lançou o compromisso de eliminar
todas as 17 usinas nucleares da Alemanha até 2022. Mais que isso, ela lançou uma agressiva política
para mudar o perfil da matriz energética da Alemanha, batizada de Energiewende,
mais centrada no uso de modalidades renováveis, especialmente solar e eólica
Nos últimos anos, o país vem batendo recordes no uso de energia renovável – em 2020,
elas responderam por 46% da energia utilizada, um percentual elevado pra
um país sem grandes hidrelétricas e até então bastante dependente do carvão
Mas talvez um dos melhores exemplos práticos do estilo de liderança de Merkel é nosso
momento número 2, a legalização da união homoafetiva na Alemanha
O ano era 2017 e já fazia mais de uma década o CDU, a União Democrata-Cristã, seu partido,
vinha bloqueando o avanço das discussões sobre o tema no Parlamento, o Bundestag
A própria chanceler já havia declarado ser contrária à aprovação
E então, em uma entrevista em junho daquele ano a uma revista feminina,
ao responder uma pergunta da plateia, Merkel disse que vinha observando cada vez mais apoio
à pauta entre diferentes partidos e afirmou que não impediria que ele fosse colocado em pauta
no Legislativo em algum momento no futuro. E emendou que os parlamentares, mesmo seus
correligionários, deveriam votar “de acordo com suas consciências” e não
necessariamente conforme a posição do partido. E então, em uma sequência de fatos surpreendente,
a oposição rapidamente tratou de colocar o tema em votação – em 30 de junho,
apenas três dias depois da entrevista. A chanceler votou contra, mas a união homoafetiva,
que passou a dar aos casais homossexuais os mesmos direitos que os heterossexuais casados,
como a adoção, foi aprovada. Questionada sobre seu
posicionamento, ela respondeu:
E assim, mais uma vez, ela conseguiu navegar
pela oposição sem necessariamente se prejudicar. Em pelo menos um momento importante, entretanto,
Merkel contrariou completamente seu estilo. Vamos à crise migratória
Em 2015, a Europa se viu diante da mais grave crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial
Com o recrudescimento da guerra na Síria e de conflitos no Afeganistão e no Iraque,
mais de um milhão de imigrantes e refugiados entraram no continente apenas naquele ano
Diante das imagens do desespero de migrantes que consternaram o mundo,
a chanceler respondeu de forma abrupta. Ela não consultou extensivamente as
pessoas que entendem do assunto para formar um julgamento detalhado, analisar as consequências
e agir – uma rotina que até então tinha se repetido em todas as suas grandes decisões
A Alemanha então mudou radicalmente suas regras migratórias e adotou
uma política ousada de portas abertas. Foi o país do continente a receber maior número de
pessoas – 476 mil pedidos de asilo em 2015, 36,6% entre um total de 1,3 milhão (dados da Eurostat)
A frase da primeira-ministra que ficou emblemática – “wir schaffen Das”, algo como
“nós conseguiremos” – sugeria que a resposta poderia ser mais humanitária que política
O que aconteceu daí pra frente dividiu opiniões. Enquanto ela se tornava “a pessoa do ano” pela
revista Time, viu-se diante das mais duras críticas já feitas à sua gestão,
na Europa e dentro da própria Alemanha. Os críticos dizem que a política muito
flexível acabou abrindo a porta pra partidos populistas, como o Alternatif fur Deutschland,
o AfD, que passou de nanico no Parlamento a uma sigla com cerca de 12% dos assentos
Para a cientista política Andrea Römmele, professora de ciências políticas da Escola
de Governança de Hertie em Berlim, a decisão foi acertada e vai ser algo pelo que a
chanceler vai ser lembrada no futuro
Questionada em agosto de 2020 se se
arrependia das decisões tomadas nesse período, a chanceler afirmou que faria tudo novamente
Mas não dá pra falar da Merkel sem mencionar a crise existencial da
União Europeia, nosso quarto momento. Poucos anos depois de assumir o poder,
a chanceler teve de lidar com a crise financeira de 2008, que chacoalhou a Europa, colocou o euro à prova e tem desdobramentos até hoje. A política de socorro aos países do bloco costurada por ela, de um lado, gerou enorme insatisfação entre espanhóis, portugueses, italianos e gregos, que tiveram de se submeter às políticas de
austeridade impostos como contrapartida para a liberação de ajuda financeira
Ao mesmo tempo, ajudou a solidificar a imagem da chanceler como uma das principais líderes globais
Nesse período, ela também deu uma sinalização importante aos alemães, que lhe garantiu
o apoio interno de que necessitava. Ao impor as medidas de austeridade,
ela dizia ao contribuinte alemão que estava cuidando do seu dinheiro
Merkel sempre tentou agir como embaixadora da economia alemã,
da indústria alemã, e de certa forma conseguiu. Ela deixa o poder com bons indicadores econômicos
Já a ideia de fortalecer a União Europeia, essa foi mais difícil
Merkel deixa o poder com o bloco em crise, de ressaca pela saída do Reino Unido, um processo
longo que teve início com um referendo em 2016 e foi concluído apenas nos estertores de 2020
Internamente, sua aprovação bateu recorde recentemente, graças à
forma como ela conduziu a pandemia de covid-19. Logo no início da pandemia, no dia 18 de março
de 2020, em um pronunciamento na TV, durante 12 minutos ela explicou de maneira professoral o que
estava acontecendo e o que precisava ser feito
A partir desse discurso, ela conseguiu o apoio
popular de que precisava para pressionar os ministros-presidentes dos estados federados,
algo semelhante aos governadores no Brasil, a decretarem os primeiros lockdowns
Até então, muitos deles estavam reticentes ante o custo político das medidas
Mais uma vez, ela abandonou o “estilo Merkel”. Foi uma fala mais emocional, mais direta,
sem, contudo, ser populista. A cientista política Jasmin Riedl,
professora de ciências políticas da Universidade das Forças Armadas,
em Munique, conjectura que talvez a mudança de humor se deva ao fato de que ela de fato se
sentiu tocada por tudo o que estava acontecendo, talvez fosse o fato de que ela já não era mais
presidente de seu partido, estivesse de saída. Mas fato é que a retórica ecoou entre os alemães
Em dezembro de 2020, a chanceler fez seu discurso mais emocionado
Em um debate no Bundestag, gesticulando mais que o normal,
ela defendeu as medidas de distanciamento social nas festas de fim de ano:
A aprovação da chanceler bateu 90% em abril e ela entrega a seu partido uma
enorme vantagem para as eleições de setembro. Espero que esse conteúdo tenha sido útil
Muito obrigada e até a próxima!