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BBC Brasil 2018 (Áudio/Vídeo+CC), 'Como conheci e perdoei o índio de tribo isolada que me flechou no rosto'

'Como conheci e perdoei o índio de tribo isolada que me flechou no rosto'

[Dec 20, 2018].

Eu vou contar a história fantástica de um homem que passou quase meio século na Floresta Amazônica protegendo povos indígenas isolados.

Ele já viu a morte de perto algumas vezes: uma flecha atravessou o rosto dele e até hoje quando fecha os olhos, ele vê o rosto do indígena isolado que matou durante um confronto.

Eu sou João Fellet, repórter da BBC News Brasil, e vou contar a história desse cara hoje.

O governo brasileiro diz que há hoje mais de cem registros de povos isolados no Brasil e vários deles estão no Acre, onde o paulista José Meirelles passou a maior parte da carreira dele.

Ele era um sertanista, profissão com uma longa tradição no Brasil e que teve como expoentes o Marechal Cândido Rondon e os irmãos Villas Bôas.

Essas pessoas dedicaram as vidas para proteger indígenas e reduzir o impacto dos primeiros contatos desses grupos com o mundo exterior.

O tema dos povos isolados veio à tona recentemente quando o missionário americano John Chau foi morto a flechadas enquanto tentava evangelizar um grupo não contatado na Índia.

Meirelles comentou o acontecimento: "Eu acho que esses índios têm que dar um curso para os índios aqui do Brasil.

Esse negócio de flechar missionário, eu acho ótimo".

Meirelles conhece a sensação de ter uma flecha atravessando a própria carne.

Em 2004, ele estava pescando perto da base da Funai onde morava, na região do rio Envira, quando um grupo da etnia Tsapanawa se aproximou sem querer conversa.

Um dos índios disparou uma flecha, que atravessou o rosto dele da bochecha até a nuca.

Com a roupa encharcada de sangue, ele fugiu pela margem.

Ouviu o zunido de outras flechas tirando uma fina de seu corpo e deu um tiro para o alto.

Só então foi socorrido e salvo por colegas da base da Funai.

Ele só escapou com vida graças à chegada de um helicóptero do Exército com remédios e um médico.

Dez anos depois, o mesmo grupo de índios que promoveu aquele ataque deixou o isolamento e foi morar perto da base da Funai.

Meirelles contou pra gente como foi que descobriu quem tinha sido o autor da flechada: Eu estava conversando com um velho lá que tinha uma marca no braço e perguntei para ele o que era aquilo, via um intérprete.

Ele falou: "ah, foi uma flechada de Mascho Piros".

Apareceu outro velho com duas marcas na perna.

"Não, foi Mascho Piro que me flechou aqui".

Aí começou a rolar essas histórias.

Aí eu mostrei a marca da minha flechada no rosto.

Aí um velho perguntou: "Foi uma flechada?"

Foi.

"Onde foi?"

Mostrei o lugar, bem pertinho da base.

Ele riu.

Vinha passando um cara, ele falou: "lá está o cara que te flechou".

Aí continuou tudo bem. Depois o cara ficou sabendo que ele me falou, veio falar comigo desconfiado, achando que eu ia vingar, perguntando se eu não ia matar ele.

Eu: "não, esquece isso aí, então já foi sem querer".........

Não sei se ele ficou envergonhado ou se ficou com medo.

Meirelles depois soube porque ele tinha sido flechado.

Aquele mesmo grupo contou que um cara parecido com ele, o cabelo branco, barbudo, a pele avermelhada, tinha atacado uma aldeia e matado uma índia.

Os índios pensaram que Meirelles fosse um parente daquele homem e resolveram vingar o ataque.

Os índios não sabiam quem era o homem que atacou aldeia, mas Meirelles suspeita que fosse um madeireiro ou traficante.

Os povos isolados daquela região têm sofrido nos últimos anos com invasões desses grupos, que normalmente andam armados.

Os próprios Tsapanawa que fizeram contato com Meirelles contaram de um outro ataque recente que quase exterminou o grupo.

Na década de 90 o povo Tsapanawa tinha cerca de 150 pessoas depois desse ataque sobraram 35.

As agressões que os índios não contatados têm sofrido fizeram com que Meirelles mudasse a opinião dele em relação ao isolamento desses grupos.

Em quase toda a carreira, ele concordou com a posição atual do governo brasileiro, que é evitar contatar indígenas isolados.

O governo tem só a missão de demarcar os territórios dos grupos e proteger as áreas.

Qualquer iniciativa de contato deve partir dos próprios indígenas.

Mas hoje Meirelles acha que muitos desses povos correm risco de extinção se continuarem isolados, por causa dos ataques de traficantes, madeireiros e também por conflitos que eles travam com outros grupos isolados.

Todo mundo é inimigo de todo mundo, parceiro.

Além da pressão externa, tem uma guerra interna sempre rolando ali.

Aí já são 3 ou 4 grupos isolados.

Futuramente, vai ter que chegar uma hora, se der tempo depois que (todos esses grupos) fizerem o contato de chamar todo mundo e falar: vamos acabar com esse negócio de se matar porque o inimigo é outro.

Meirelles acha que o contato com grupos isolados pode ser difícil, pode causar mudanças culturais irreversíveis, mas que há formas de minimizar os impactos.

No caso do contato com Tsapanawa, todos os índios foram vacinados, e a Funai contou com intérpretes de um povo que fala uma língua muito parecida com a deles.

Ele contou um episódio curioso.

A primeira vez que um grupo Tsapanawa visitou uma cidade.

"A primeira vez que foram a Feijó, nós fomos ao mercado.

Eu estava lá.

A gente chegou lá no mercado, um desses rapazes viu um monte de macaxeira, o cara pegou um monte de macaxeira embaixo do sovaco e saiu gritando.

Eu falei pera aí, não pode.

Por que que não pode?

Peguei a macaxeira de volta, paguei.

Que que é isso?

Isso chama dinheiro.

Eles: como é que a gente arruma isso?

Para arrumar isso aí, tá vendo aquele campo ali do outro lado?

Tem que passar dia todinho agachado, cortando o mato, para o dono do roçado no fim do dia te dar uma notinha dessas que dá pra comprar só 3 macaxeiras.

Ele falou: "vixe, rapaz, aqui é bonito mas não vou ficar muito tempo por aqui, não".

Hoje, Meirelles está prestes a se aposentar.

No ano que vem, ele vai se mudar para a Bahia, para uma cidade praiana e pretende escrever um livro de memórias.

Nesse livro, ele vai ter que contar um dos episódios mais difíceis que já viveu na carreira e que até hoje o assombra.

Meirelles viajava pelas matas do Acre nos anos 1970, acompanhado por seu sogro, quando os dois foram atacados por índios isolados do povo Mascho Piro.

Ele reagiu atirando contra o índio, que morreu.

O próprio Meirelles tornou esse caso público, quando escreveu um relatório para a Funai.

Ele não sofreu qualquer punição, porque as autoridades acharam que ele agiu em legítima defesa.

Meirelles falou sobre a dor que esse episódio desperta nele até hoje.

Ainda me atormenta, porque é uma contradição desgraçada.

Passei a vida toda defendendo os índios e um dia tive que matar um índio.

Mas se isso me atormenta, por um lado, e muito, por outro me mostra o que o ser humano é, meu amigo.

Na hora do vamos ver, nessas situações extremas, a gente mostra o bicho que é.

Preferi sobreviver, porque se não tivesse feito isso não teria sobrevivido, não estaria conversando com você aqui agora.

Mas é uma coisa que me assombra.

Por outro lado, me mostra que eu sou humano, igual a um Tsapanawa, quando flecha um Mascho Piro.

Ou vice-versa.

Eu não sou diferente deles, não.

Quem sabe a gente não faz uma outra entrevista com ele depois do lançamento?

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Até mais! Tchau!"

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'Como conheci e perdoei o índio de tribo isolada que me flechou no rosto' Wie ich den Indianer eines isolierten Stammes, der mir ins Gesicht schoss, traf und ihm verzieh 'How I met and forgave the Indian from an isolated tribe who arrowed me in the face' Comment j'ai rencontré et pardonné à l'Indien d'une tribu isolée qui m'a tiré dessus". 私の顔を撃った孤立部族のインディアンと出会い、許した方法

[Dec 20, 2018].

Eu vou contar a história fantástica de um homem que passou quase meio século na Floresta Amazônica protegendo povos indígenas isolados.

Ele já viu a morte de perto algumas vezes: uma flecha atravessou o rosto dele e até hoje quando fecha os olhos, ele vê o rosto do indígena isolado que matou durante um confronto.

Eu sou João Fellet, repórter da BBC News Brasil, e vou contar a história desse cara hoje.

O governo brasileiro diz que há hoje mais de cem registros de povos isolados no Brasil e vários deles estão no Acre, onde o paulista José Meirelles passou a maior parte da carreira dele.

Ele era um sertanista, profissão com uma longa tradição no Brasil e que teve como expoentes o Marechal Cândido Rondon e os irmãos Villas Bôas.

Essas pessoas dedicaram as vidas para proteger indígenas e reduzir o impacto dos primeiros contatos desses grupos com o mundo exterior.

O tema dos povos isolados veio à tona recentemente quando o missionário americano John Chau foi morto a flechadas enquanto tentava evangelizar um grupo não contatado na Índia.

Meirelles comentou o acontecimento: "Eu acho que esses índios têm que dar um curso para os índios aqui do Brasil.

Esse negócio de flechar missionário, eu acho ótimo".

Meirelles conhece a sensação de ter uma flecha atravessando a própria carne.

Em 2004, ele estava pescando perto da base da Funai onde morava, na região do rio Envira, quando um grupo da etnia Tsapanawa se aproximou sem querer conversa.

Um dos índios disparou uma flecha, que atravessou o rosto dele da bochecha até a nuca.

Com a roupa encharcada de sangue, ele fugiu pela margem.

Ouviu o zunido de outras flechas tirando uma fina de seu corpo e deu um tiro para o alto.

Só então foi socorrido e salvo por colegas da base da Funai.

Ele só escapou com vida graças à chegada de um helicóptero do Exército com remédios e um médico.

Dez anos depois, o mesmo grupo de índios que promoveu aquele ataque deixou o isolamento e foi morar perto da base da Funai.

Meirelles contou pra gente como foi que descobriu quem tinha sido o autor da flechada: Eu estava conversando com um velho lá que tinha uma marca no braço e perguntei para ele o que era aquilo, via um intérprete.

Ele falou: "ah, foi uma flechada de Mascho Piros".

Apareceu outro velho com duas marcas na perna.

"Não, foi Mascho Piro que me flechou aqui".

Aí começou a rolar essas histórias.

Aí eu mostrei a marca da minha flechada no rosto.

Aí um velho perguntou: "Foi uma flechada?"

Foi.

"Onde foi?"

Mostrei o lugar, bem pertinho da base.

Ele riu.

Vinha passando um cara, ele falou: "lá está o cara que te flechou".

Aí continuou tudo bem. Depois o cara ficou sabendo que ele me falou, veio falar comigo desconfiado, achando que eu ia vingar, perguntando se eu não ia matar ele.

Eu: "não, esquece isso aí, então já foi sem querer".........

Não sei se ele ficou envergonhado ou se ficou com medo.

Meirelles depois soube porque ele tinha sido flechado.

Aquele mesmo grupo contou que um cara parecido com ele, o cabelo branco, barbudo, a pele avermelhada, tinha atacado uma aldeia e matado uma índia.

Os índios pensaram que Meirelles fosse um parente daquele homem e resolveram vingar o ataque.

Os índios não sabiam quem era o homem que atacou aldeia, mas Meirelles suspeita que fosse um madeireiro ou traficante.

Os povos isolados daquela região têm sofrido nos últimos anos com invasões desses grupos, que normalmente andam armados.

Os próprios Tsapanawa que fizeram contato com Meirelles contaram de um outro ataque recente que quase exterminou o grupo.

Na década de 90 o povo Tsapanawa tinha cerca de 150 pessoas depois desse ataque sobraram 35.

As agressões que os índios não contatados têm sofrido fizeram com que Meirelles mudasse a opinião dele em relação ao isolamento desses grupos.

Em quase toda a carreira, ele concordou com a posição atual do governo brasileiro, que é evitar contatar indígenas isolados.

O governo tem só a missão de demarcar os territórios dos grupos e proteger as áreas.

Qualquer iniciativa de contato deve partir dos próprios indígenas.

Mas hoje Meirelles acha que muitos desses povos correm risco de extinção se continuarem isolados, por causa dos ataques de traficantes, madeireiros e também por conflitos que eles travam com outros grupos isolados.

Todo mundo é inimigo de todo mundo, parceiro.

Além da pressão externa, tem uma guerra interna sempre rolando ali.

Aí já são 3 ou 4 grupos isolados.

Futuramente, vai ter que chegar uma hora, se der tempo depois que (todos esses grupos) fizerem o contato de chamar todo mundo e falar: vamos acabar com esse negócio de se matar porque o inimigo é outro.

Meirelles acha que o contato com grupos isolados pode ser difícil, pode causar mudanças culturais irreversíveis, mas que há formas de minimizar os impactos.

No caso do contato com Tsapanawa, todos os índios foram vacinados, e a Funai contou com intérpretes de um povo que fala uma língua muito parecida com a deles.

Ele contou um episódio curioso.

A primeira vez que um grupo Tsapanawa visitou uma cidade.

"A primeira vez que foram a Feijó, nós fomos ao mercado.

Eu estava lá.

A gente chegou lá no mercado, um desses rapazes viu um monte de macaxeira, o cara pegou um monte de macaxeira embaixo do sovaco e saiu gritando.

Eu falei pera aí, não pode.

Por que que não pode?

Peguei a macaxeira de volta, paguei.

Que que é isso?

Isso chama dinheiro.

Eles: como é que a gente arruma isso?

Para arrumar isso aí, tá vendo aquele campo ali do outro lado?

Tem que passar dia todinho agachado, cortando o mato, para o dono do roçado no fim do dia te dar uma notinha dessas que dá pra comprar só 3 macaxeiras.

Ele falou: "vixe, rapaz, aqui é bonito mas não vou ficar muito tempo por aqui, não".

Hoje, Meirelles está prestes a se aposentar.

No ano que vem, ele vai se mudar para a Bahia, para uma cidade praiana e pretende escrever um livro de memórias.

Nesse livro, ele vai ter que contar um dos episódios mais difíceis que já viveu na carreira e que até hoje o assombra.

Meirelles viajava pelas matas do Acre nos anos 1970, acompanhado por seu sogro, quando os dois foram atacados por índios isolados do povo Mascho Piro.

Ele reagiu atirando contra o índio, que morreu.

O próprio Meirelles tornou esse caso público, quando escreveu um relatório para a Funai.

Ele não sofreu qualquer punição, porque as autoridades acharam que ele agiu em legítima defesa.

Meirelles falou sobre a dor que esse episódio desperta nele até hoje.

Ainda me atormenta, porque é uma contradição desgraçada.

Passei a vida toda defendendo os índios e um dia tive que matar um índio.

Mas se isso me atormenta, por um lado, e muito, por outro me mostra o que o ser humano é, meu amigo.

Na hora do vamos ver, nessas situações extremas, a gente mostra o bicho que é.

Preferi sobreviver, porque se não tivesse feito isso não teria sobrevivido, não estaria conversando com você aqui agora.

Mas é uma coisa que me assombra.

Por outro lado, me mostra que eu sou humano, igual a um Tsapanawa, quando flecha um Mascho Piro.

Ou vice-versa.

Eu não sou diferente deles, não.

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