O poder da Rússia pós-União Soviética. E a hegemonia de Putin
A Rússia é uma das maiores potências do mundo hoje.
Em diversos contextos, é ela quem mais se opõe ao poder político e militar dos Estados Unidos.
Essa disputa permanente entre os dois pólos marcou a história do século 20.
Mas não só isso.
A persistência da influência russa na política atual promete ser também uma das marcas do
século 21.
Para entender o poder que a Rússia tem atualmente é preciso voltar até pelo menos 1991.
Foi nesse que ano que o país surgiu da forma como é hoje, erguido sobre a herança e também
sobre os escombros da União Soviética.
Até então, o regime de partido único – o Partido Comunista – havia ditado os rumos
não apenas dos russos e soviéticos, mas também de dezenas de outros países que orbitavam
na esfera de influência política e econômica de Moscou.
Esse poder comunista monolítico começou a balançar de fato no fim dos anos 1980,
quando o então líder soviético Mikhail Gorbatchev deu início a um programa de lenta
abertura política, conhecido como glasnost, e de abertura econômica gradual, conhecido
como perestroika.
As reformas impulsionadas por Gorbatchev eram uma tentativa de acomodar as tensões que
se avolumavam no interior do bloco soviético.
Essas tensões internas eram agravadas pelo alto custo da corrida armamentista com os
EUA na Guerra Fria, quando os dois países disputavam a liderança no campo aeroespacial,
militar, econômico, cultural e ideológico.
A União Soviética foi dissolvida em 1991.
O reformador Gorbatchev caiu.
E, em seu lugar, assumiu o primeiro presidente eleito da Rússia, Boris Yeltsin.
Todas as demais antigas repúblicas soviéticas se espalharam em novos Estados soberanos.
Nesse rearranjo, a Rússia emergiu como o maior país do bloco e o maior país do mundo
em extensão territorial.
Mas a entrada russa no mundo capitalista foi turbulenta.
Em vez da abertura gradual tentada por Gorbatchev, Yeltsin apostou num choque de capitalismo.
O país deu início a uma onda de privatizações de sua empresas estatais.
A economia russa foi aberta para companhias estrangeiras, que entraram num mercado de
quase 150 milhões de consumidores.
Esse era um mercado novo, inexplorado e ávido pelo contato com o Ocidente.
Antigos burocratas soviéticos converteram-se em oligarcas.
Surgiu uma classe de novos milionários russos, grandes magnatas – muitos deles envolvidos
com corrupção e com o crime organizado.
Toda essa turbulência da abertura levou o país a um novo tipo de crise, provocada pela
dinâmica do capitalismo e por liberdades civis recém-conquistadas.
Em 1993, foi a vez da crise política.
Pressionado por opositores, Yeltsin dissolveu o Parlamento e reprimiu manifestações em
Moscou, deixando dezenas de mortos.
Ainda assim, ele foi eleito para um segundo mandato em 1996, vencendo um adversário do
Partido Comunista no segundo turno.
Em 1998, foi a vez da crise econômica.
Endividado, mergulhado na inflação e no desemprego, o país deu um calote na dívida
externa, provocando efeitos negativos na economia global.
Internamente, houve uma grande piora nos indicadores sociais em relação à era soviética.
O índice de desenvolvimento humano e o PIB per capita caíram caíram durante toda a década de 1990.
E a expectativa de vida, que era de 69 anos em 1988 passou a ser de 64 anos em 1994
A soma das crises marcou o fim do segundo mandato de Boris Yeltsin.
Desgastado e acuado – acusado pela imprensa russa de comparecer bêbado a cerimônias
públicas – o primeiro presidente eleito do país anunciou em rede nacional que estava
deixando o cargo.
A renúncia de Yeltsin, em 1999, marcou a ascensão de seu então vice-presidente, Vladimir
Putin, ao poder.
O ex-agente da KGB, o temido serviço secreto soviético, se converteria a partir de então
num líder hegemônico dentro da Rússia.
Nenhum outro político seria capaz de rivalizar com Putin pelas décadas seguintes.
Depois de substituir Yeltsin por um ano, Putin disputou e venceu sua primeira eleição presidencial,
no ano 2000.
Ele obteve 53% dos votos.
E esse era só o começo.
Em 2004, veio nova vitória eleitoral.
E Putin foi reeleito presidente para um novo mandato de quatro anos, desta vez com quase 72% dos votos.
Sob os primeiros anos Putin, vieram anos de melhorias em indicadores importantes.
A expectativa de vida, por exemplo, que era de 65 anos quando Putin chegou ao Kremlin,
em 1999, passou a ser de 67.949 em 2008.
E o Índice de Desenvolvimento Humano pulou para patamares acima dos registrados ainda
na União Soviética.
Nesse período, o presidente russo concentrou poderes.
Além de assegurar a maioria na Duma e no Conselho, que são os dois órgãos do Legislativo
russo, Putin também ampliou o uso da inteligência e da polícia para reprimir movimentos da
sociedade civil.
Ele sufocou violentamente movimentos separatistas na região rebelde da Chechênia e pouco fez
para solucionar os assassinatos de críticos de seu governo em Moscou.
Não podendo disputar a presidência pela terceira vez seguida, Putin indicou um apagado afilhado
político, Dimitris Medved, para o cargo, enquanto ele mesmo migrou para a posição de primeiro-ministro.
Em sistemas semi-presidencialistas, como o russo, o presidente é o chefe de Estado,
e o primeiro-ministro é o chefe de governo.
Mas essa divisão formal não manteve Putin longe do controle de quase todos os assuntos
do país - mesmo quando ele permaneceu na função de premiê de 2008 a 2012.
Medvedev nunca chegou perto de fazer sombra a Putin.
Muito menos qualquer figura da oposição.
Um de seus maiores antagonistas, Alexei Navalny, até conseguiu mobilizar algumas manifestações
de rua contra Putin a partir de 2008.
Mas a oposição nunca decolou.
Em grande medida, por causa da violência e da perseguição, denunciadas por organizações
internacionais de direitos humanos e por outros países.
Putin voltou a disputar a presidência, em 2012.
E voltou a vencer.
Só que, dessa vez, o mandato presidencial já não era de quatro, mas de seis anos,
graças a uma reforma constitucional.
A coesão interna deu impulso às grandes pretensões internacionais da Rússia atual.
O orçamento militar da Rússia foi multiplicado por mais de 12 vezes entre os anos de 1999
e de 2012.
A ameaça nuclear – que havia sido a tônica nos anos soviéticos – arrefeceu.
Prova disso é que o número de ogivas nucleares russas passou de pouco mais de 35 mil em 1989,
para pouco mais de 4 mil, em 2014.
O país é o segundo maior exportador mundial de armas, atrás apenas dos EUA.
Mas o lance internacional mais ambicioso da era Putin ocorreu em 2014, quando a Rússia
tomou para si o território da Crimeia.
O movimento envolveu uma mistura de pressão militar e política exercida sobre o governo
da Ucrânia, que vinha se aproximando da União Europeia.
Além de colocar seus militares na Crimeia, Putin respaldou a realização de um referendo
no qual os moradores da península decidiram deixar a Ucrânia e unir-se à Rússia.
Os EUA e as potências europeias protestaram, mas Putin não deu ouvidos.
Esse lance é o melhor exemplo da disputa latente entre a Rússia e as potências do Ocidente.
Assim como acontecia com a União Soviética na Guerra Fria, os russos tentam manter um
cordão de aliados numa zona tampão formada pelos países do leste europeu.
Mas esse movimento não está restrito apenas às ex-repúblicas soviéticas.
Putin transformou-se desde 2015 no maior fiador militar do governo de Bashar al-Assad na Síria também.
E estendeu seus interesses até mesmo sobre a Venezuela, aqui na América Latina, na fronteira
com o Brasil.
Além das ações no campo militar, a Rússia também passou a agir internacionalmente para
desestabilizar os processos eleitorais de países estrangeiros.
Em 2016, os serviços de inteligência dos EUA afirmaram que agentes russos tiveram acesso
a mensagens privadas do Partido Democrata durante as eleições presidenciais daquele ano.
Em seguida, foi aberta uma investigação para determinar se o presidente dos EUA, Donald
Trump, do Partido Republicano, agiu em conluio com os russos para tirar benefícios políticos
e econômicos dessa relação.
Nos anos seguintes, países europeus também acusaram a Rússia de disseminar notícias
falsas e de comandar um exército de robôs nas redes sociais para minar seus processos eleitorais.
Ao mesmo tempo que mostrou força internacionalmente,
Putin seguiu colecionando vitórias internamente.
Em 2018, venceu a eleição presidencial, para um novo mandato de seis anos.
A popularidade de Putin na Rússia não dá sinais de diminuir.
A vitória de 2018 se deu com 76% dos votos.
Desde que pisou no Kremlin como presidente pela primeira vez, em 1999, até o fim de
seu quarto mandato presidencial eletivo, programado para terminar em 2024, Putin terá passado
25 anos ininterruptos no poder – variando entre os cargos de presidente e de primeiro-ministro.
Esse tempo só é inferior aos 29 anos que Josef Stalin passou no controle da União
Soviética, entre 1924 e 1953.
A Rússia de Putin não é hoje o que a União Soviética de Stalin foi no passado.
O comunismo praticamente desapareceu do horizonte político do país e a corrida nuclear com
os EUA foi refreada.
Mas Moscou ainda cultiva as pretensões de uma superpotência, cujo protagonismo vai
muito além de seu entorno imediato.
Putin mantém características de um autocrata, o jornalismo é exercido com importantes restrições no país,
os movimentos civis têm pouco espaço e a oposição é quase totalmente ausente.
A violenta repressão contra os direitos LGBTIs tornou-se uma marca negativa da Rússia atual;
uma marca conhecida internacionalmente sobretudo durante a Copa do Mundo de 2018, quando o
turistas foram instruídos a não demonstrar afeto em relação a pessoas do mesmo sexo.
Os contornos dessa nova Rússia seduzem líderes em muitas partes, inclusive no Ocidente.
E desafiam o modelo de democracia liberal imposto pelos EUA.
Passadas décadas desde a ruína soviética, Moscou segue sendo um pólo incontornável
de poder e de influência para todo o mundo.