As origens da crise na Venezuela
A Venezuela está em crise.
Mas ela não começou agora.
Também não começou com a eleição de Hugo Chávez em 1998.
Ou no golpe que ele sofreu em 2002.
Ou no golpe que ele mesmo tentou dar em 1992.
A crise atual é parte de uma longa cadeia de crises.
Somadas, elas levaram os venezuelanos à encruzilhada; ou ao beco em que estão agora.
Para entender o que acontece na Venezuela hoje é preciso voltar até pelo menos 1989.
Carlos Andrés Pérez era então o presidente.
Depois de o governo subir o preço dos combustíveis e das passagens, o povo foi às ruas.
Queimaram carros, casas e comércios, principalmente na capital, Caracas.
Essa revolta ficou conhecida como “caracazo”.
Aquele já era um tempo de partidos e de políticos desprestigiados.
O país afundava em casos de corrupção, e o presidente Pérez – que tocava uma série
de reformas liberais – recorreu aos militares para se proteger.
A repressão ao “caracazo” foi brutal: deixou entre 300 e 3.000 mortos.
Como muita gente foi jogada em vala comum, o número certo ninguém nunca vai saber.
A sociedade rachou.
E as Forças Armadas racharam também.
Um grupo de militares de esquerda achou a repressão aos manifestantes descabida.
E, com apoio popular, foi para cima do governo.
Em fevereiro de 1992 veio a primeira tentativa de golpe contra Pérez.
Entre os envolvidos, estava um paraquedista do Exército chamado Hugo Chávez Frías.
As forças leais ao presidente Pérez reagiram.
Chávez acabou preso, mas a história dele não acabou aí.
Em novembro de 1992, os companheiros de Chávez tentaram um novo golpe.
De novo, falharam.
A coisa foi grande.
As duas rebeliões deixaram mais de 300 mortos na Venezuela.
O que o Exército não fez à força, a Justiça fez com um processo de impeachment.
E, em 1993, Pérez caiu.
A eleição seguinte, naquele mesmo ano, 1993, foi vencida por Rafael Caldera.
Ele indultou os golpistas.
Chávez saiu da cadeia, e, cinco anos depois, em 1998, venceu sua primeira eleição para
presidente com mais de 56% dos votos.
Dois termos são chave para entender os governos de Chávez.
O primeiro é “chavismo”.
O segundo, “bolivarianismo”.
O chavismo se converteu num culto à personalidade carismática do novo presidente.
E também no apoio a uma agenda econômica estatizante e centralizadora, batizada pelo
próprio Chávez de “socialismo do século 21”.
Já o “bolivarianismo” era o pano de fundo.
A expressão veio do nome de Simon Bolívar, que liderou a luta contra a colonização
espanhola no século 19.
Chávez se pôs como herdeiro de Bolívar, capturando para si uma figura forte no imaginário
popular.
Em 1999, um ano depois de eleito, Chávez convocou um referendo nacional.
O povo foi às urnas e aprovou uma profunda mudança na Constituição.
O parlamento foi transformado numa instância unicameral.
Caiu a estrutura de Câmara e Senado, como é no Brasil.
No lugar, surgiu uma Assembleia Nacional única.
Sob a nova Constituição, Chávez concorreu de novo.
E venceu de novo, no ano 2000, com margem ainda maior que da primeira vez: 59%.
Além da presidência, ele conquistou também ampla maioria na nova Assembleia.
Com poderes ampliados, o presidente emitiu novos decretos, estatizou terras e empresas,
e acelerou a aprovação de leis na Assembleia Nacional, aumentando a intervenção do Estado
na economia, sobretudo no petróleo, principal produto venezuelano.
Com isso, aprofundou o seu projeto bolivarianista.
Muitos empresários e sindicatos reagiram.
O país enfrentou grandes greves gerais e protestos de rua nesse período.
Até que, no dia 11 de abril de 2002, uma marcha chavista e outra, da oposição se encontram
em Caracas.
O confronto deixou 19 mortos e mais de 100 feridos.
No dia seguinte, um grupo de políticos, empresários e militares de oposição tirou Chávez do
poder à força.
O militar que havia tentado um golpe em 1992, sofreu, ele mesmo, um golpe dez anos depois.
No entanto, o golpe foi breve.
Tropas governistas reverteram a ação e puseram Chávez de volta no Palácio Miraflores
que é sede do governo venezuelano, três dias depois.
A partir daí, governo e oposição radicalizaram ainda mais suas posições.
Chávez demitiu milhares de trabalhadores da PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana.
Eles foram acusados de atos de sabotagem.
Em junho de 2004, a oposição convocou um referendo para tirar Chávez do poder.
Mas o presidente saiu vitorioso.
Com 59% dos votos, se fortaleceu.
No ano seguinte, 2005, a oposição se retirou das eleições legislativas.
A alegação era de que a Justiça Eleitoral estava tomada pelo chavismo, e as eleições
já não eram mais limpas no país.
Por causa disso, a abstenção foi de 70%.
E os chavistas mantiveram assim a maioria dos assentos no parlamento.
Em 2006, Chávez venceu mais uma eleição presidencial – a terceira em oito anos –, com
62% dos votos.
Embalado, propôs mais uma reforma constitucional.
Entre as propostas, estava a que dava o direito do presidente concorrer a reeleições ilimitadas.
Mas, nessa aí, o presidente perdeu.
No fim de 2012, Chávez concorreu e venceu sua quarta e última eleição presidencial,
com 55% dos votos.
Já doente, acabou morrendo no dia 5 de março de 2013, vítima de um câncer.
Seu vice e afilhado político, Nicolás Maduro, vinha cumprindo as funções presidenciais
desde então.
Como Chávez morreu antes de tomar posse para seu quarto mandato, novas eleições foram
convocadas para 2013.
Maduro, que havia sido motorista de ônibus, sindicalista e, depois, ministro de Chávez,
concorreu, venceu, com pouco mais de 50% dos votos, uma margem muito apertada, e assumiu.
Só que, dois anos depois, nas eleições legislativas de 2015, a oposição, fortalecida,
conquistou, pela primeira vez desde a origem do chavismo, a maioria dos assentos da Assembleia
Nacional.
A nova correlação de forças aumentou a pressão sobre o novo presidente.
A oposição tentou convocar um referendo para tirar Maduro do poder antes do fim do
mandato dele, que iria até 2018. A Justiça Eleitoral vetou o pedido sob o argumento de que as assinaturas colhidas para
embasar o referendo tinham sido fraudadas.
A Assembleia se rebelou.
E o Tribunal Superior de Justiça, que equivale ao Supremo aqui no Brasil, interveio.
A economia mergulhou numa crise profunda.
A inflação passou de 254% em 2016.
A mortalidade infantil cresceu 30% no mesmo ano.
Os avanços sociais celebrados pelo chavismo derreteram.
Quando Chávez assumiu, em 1999, o PIB venezuelano era de US$ 97 bilhões.
Quando ele morreu, em 2013, era de US$ 371 bilhões.
Ou seja, o PIB foi multiplicado por três.
A expectativa de vida aumentou.
Mas esses indicadores começam a mudar quando o preço do petróleo despencou.
A dependência do petróleo como motor da economia fez com que a Venezuela não investisse
no desenvolvimento da indústria e da agricultura ao longo dos anos.
Com uma balança comercial positiva, o país usava os dólares que entravam para importar
o que não produzia.
Mas, quando a economia nacional balançou, não havia mais dinheiro para comprar.
Mais de 40% dos produtos estavam em falta no mercado venezuelano em 2016.
Entre os produtos com preço regulado pelo governo, a escassez chegava a 80%.
Faltou comida, remédio, papel higiênico, os itens mais básicos da vida cotidiana das
pessoas.
A pior crise econômica da história da Venezuela levou milhares às ruas, mais uma vez.
O governo reprimiu com violência.
Organizações de direitos humanos acusaram Maduro de prender dissidentes por razões
políticas.
Forças do governo foram acusadas de desaparições, tortura e execuções de oposicionistas.
Em 2018, a Venezuela tem marcada mais uma eleição presidencial.
Se o país seguir no ritmo dos últimos 28 anos, este será mais um capítulo de uma
crise que não dá sinais de que possa terminar.
Se as divisões entrarem no caminho democrático, terá sido uma encruzilhada.
Se as tensões seguirem aumentando, a Venezuela pode descobrir que se meteu num beco.