Fala Gringo EP 4 | Música, religião e criminalidade
Hoje vou apresentar para vocês a nova série da Netflix: Sintonia. Não apenas por ser uma produção brasileira, mas porque o seu roteiro traz questões sociais muito importantes vividas dentro das periferias do Brasil. Algo que acredito que pode ser bem interessante para você quer entender o Brasil um pouco além dos clichês.
Afinal, essa a ideia do projeto: trazer assuntos relacionados à cultura e sociedade brasileira, para você melhorar a compreensão do Português, conhecer melhor a realidade do país e aprender novas palavras e expressões.
Eu sou o Leni e esse é o quarto episódio do “Fala, Gringo!”, o seu podcast de Português Brasileiro.
[ MÚSICA ]
Lembrando que você pode acompanhar este episódio com a transcrição completa, mais uma lista de vocabulário. E, o melhor, totalmente gratuita! É só acessar os links disponíveis no meu perfil do instagram [@Portugues.com.leni. ](https://www.instagram.com/portugues.com.leni/) E não esqueça de assinar o podcast para não perder os próximos episódios.
Antes de começar, como de costume, quero agradecer todo mundo que acompanhou os últimos episódios e os recados que vocês têm enviado por mensagem direta no Instagram. Hoje, em vez de ler, quero compartilhar um áudio da Carmen Tissot.
(Áudio)
Carmen, muito obrigado. Eu já aprendi muito com podcasts de língua. Então saber tô contribuindo de alguma forma com o aprendizado de outras pessoas no mundo me deixa bem feliz. Principalmente por estar transmitindo uma língua que eu amo.
Se você, assim como a Carmem, quer enviar uma mensagem, pode escrever um comentário na página da transcrição do episódio ou pelo instagram. Repito [Portugues.com.leni. ](https://www.instagram.com/portugues.com.leni/) Lá você também encontra dicas mais práticas de vocabulário e expressões em português brasileiro.
Agora chega de enrolação. Vamos ao assunto do dia:
📷
Sintonia: Um recorte das periferias no Brasil
Música, criminalidade e religião são temas muito presentes nas comunidades periféricas do Brasil, por isso achei legal trazer esse tema para conversar com vocês. Ao perceber como esses temas são tratados no seriado, pensei que seria uma ótima oportunidade de falar deles com uma abordagem mais leve, sem que o episódio ficasse tão sério.
Falando em seriados, não posso dizer que sou um viciado em séries. Tenho amigos que fazem maratonas, quer dizer, que assistem vários episódios de uma só vez. Comigo isso nunca funciona. Passar muito tempo em frente à TV me deixa entediado. Mesmo os filmes, se passam de duas horas e meia, já começo a ficar inquieto, sem paciência.
Assistir à série SINTONIA não foi exatamente um sacrifício. Isso porque a temporada tem apenas seis episódios de quarenta minutos cada, e eu vi com calma durante a semana. A série é fruto de uma parceria entre a Netflix e o KondZilla. Fruto de é uma outra forma de dizer “resultado de…”
Se você gosta do funk Brasileiro é muito provável que já conheça este nome. KondZilla é o nome artístico de Konrad Santos, o dono do maior canal de música no YouTube na América Latina e produtor dos clipes de funk de mais sucesso no mundo!
Sintonia se passa numa favela inspirada nas comunidades periféricas de São Paulo. Para mim, isso já é um ótimo ponto, porque a periferia de São Paulo dificilmente é mostrada em produções nacionais, reforçando a ideia de que São Paulo é apenas essa grande Selva de Pedra, com arranha-céus, monumentos, parques e agitação cultural de uma metrópole.
Ao nível internacional, muito já foi explorado sobre as favelas do Rio de Janeiro. Elas são muitas e meio que se misturam entre os pontos turísticos da conhecida Cidade Maravilhosa. Tem até passeios para vivenciar a realidade de uma favela, o que particularmente eu acho muito bizarro, uma pessoa que chega ao país, compra um pacote turístico para conhecer a pobreza local. Não faz sentido, especialmente se não existem políticas que através do turismo, ajudam a tirar essas pessoas da condição de pobreza. Mas isso já é outro assunto…
Sintonia é contada a partir do ponto de vista de três jovens amigos, que moram no mesmo local e se conhecem desde que eram crianças. São eles: Doni, Rita e Nando. Cada um tentando “vencer na vida” de formas diferentes. Vencer na vida é uma expressão que usamos para falar de sucesso, tanto para pessoal quanto profissional.
📷
O sonho de Doni é ser um cantor de funk famoso e para isso, vai ter que encarar as cobranças dos pais, um casal de evangélicos, que não acredita na carreira profissional do filho dentro da música. Evangélicos é como chamamos no Brasil os praticantes do movimento protestante.
Ele é o personagem que representa a realidade da música e da importância do Funk dentro da periferia. Não apenas como algo que possibilita o lazer, mas como o gerador de renda, porque há uma indústria cultural que movimenta essas comunidades. Seja através de shows e festas, seja através audiovisual.
O próprio KondZilla, a pessoa que idealizou a série, é uma prova disso. Ele começou como videomaker gravando clipes de funk e atingiu tanto sucesso que hoje conta com mais de 5o milhões de inscritos no YouTube. Para muitos artistas da periferia, ter o seu clipe lançado no Canal KondZilla é a certeza de grande visibilidade e a possível realização do sonho de ficar famoso.
Essa relação da periferia com o funk é muito comum nos estados de Rio de Janeiro e São Paulo. O que é interessante é que de acordo com a região do Brasil, os estilos musicais da periferia vão mudando, trocando referências entre si e se transformando em novos ritmos. Isso é um dos motivos que me fazem gostar muito da música brasileira.
Enquanto o funk faz muito sucesso no sul, no norte do Brasil é o Tecnobrega, uma mistura de pop, com música eletrônica e gêneros regionais. Já na Bahia, o som da periferia é o arrocha e o pagode baiano. E assim segue. Basicamente, para cada região do país é possível encontrar ritmos que se reinventam, misturam referências e criam uma identidade própria. Estilos que falam muito sobre a identidade das pessoas daquela região, seja na forma de dançar, nos ritmos de base e principalmente na linguagem, geralmente cheia de expressões e gírias locais. É só tomar o funk como exemplo e que você já vai perceber um vocabulário bem diferente do que vê normalmente em livros e sites.
📷
A segunda protagonista da série é a Rita, uma jovem que vive sozinha porque o pai foi embora e a mãe faleceu. Para ganhar dinheiro e se sustentar, Rita trabalha como Camelô no metrô de São Paulo. Camelô é como chamamos os vendedores informais, que vendem produtos sem autorização em calçadas ou transportes públicos.
Camelôs são muito comuns no Brasil, apesar de ser uma atividade proibida, sempre há vendedores por todos os lugares, principalmente nos centros e bairros mais populares. Em algumas regiões também são conhecidos como marreteiros.
Depois de se meter numa confusão que envolve a melhor amiga, Rita encontra dentro da igreja evangélica a oportunidade de mudar de vida, tanto pela mudança de comportamento, ou seja, forma de agir em sociedade, quanto das possibilidades financeiras que a igreja oferece.
Essa personagem traz o segundo ponto da nossa discussão que é o tamanho das igrejas evangélicas nas periferias do Brasil. Inclusive, o poder que elas têm economicamente e politicamente na sociedade.
Você sabia que existe um grupo de políticos evangélicos dentro do governo brasileiro? É o que nós chamamos de Bancada Evangélica, para todos os deputados e senadores que se declaram evangélicos e votam leis com base nas suas ideologias religiosas e nos interesses das grandes igrejas que estão espalhadas pelo Brasil.
Os evangélicos são o movimento religioso que mais cresce no Brasil. Na última contagem, realizada no ano de 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, eles representavam 20% da população. Há estudiosos acreditam que nas periferias essa taxa pode chegar até 50%. Nos últimos 25 anos, só a cidade de São Paulo ganhou 2.300 templos evangélicos.
É verdade que a presença das igrejas nas comunidades não é uma característica especial do Brasil. É algo que se encontra em todo o mundo, especialmente entre os países subdesenvolvidos. E isso é muito fácil de entender. Geralmente essas comunidades não ignoradas pelo governo. Então muitas igrejas evangélicas além de acolher espiritualmente essas pessoas, essas congregações muitas vezes oferecem serviços sociais. Isso inclui desde cursos de capacitação profissional a acompanhamento de problemas do dia a dia: conflitos entre familiares, alcoolismo, violência doméstica, etc.
Algumas vezes, criminalidade e religião se misturam. Lembro de um caso em que um pastor de uma igreja evangélica foi preso por estar associado ao crime. Há também muitos casos de ex-traficantes que se tornam lÍderes religiosos. Não são poucas as histórias de pessoas que estavam envolvidas com o crime e, com a ajuda da igreja, conseguiram mudar o rumo das suas vidas. Inclusive, dentro de muitos grupos criminosos, há um código de conduta que diz que só é possível sair do crime se for para mudar de vida radicalmente. Para muitos essa é a única maneira de se manter vivo.
Bom, vontade de deixar o crime não é o caso do Nando, o nosso terceiro e último protagonista.
📷
Nando tem apenas 18 anos, uma mulher e um filho para sustentar. Ele está envolvido com o tráfico de drogas e tem o objetivo de crescer dentro do grupo criminoso. Imagina que apenas assim, ficando poderoso no crime, pode garantir melhores condições de vida para a família.
A concepção desse personagem tem tudo para parecer um clichê dos muito retratados nos filmes, se não fosse o percurso que acompanhamos o Nando fazer. Todas as suas escolhas, muitas vezes a falta delas, que colocam o personagem em situações de muita tensão. É como se ele fosse uma bomba prestes a explodir.
A relação dos três amigos na série é muito importante para provocar comparações. Doni quer ser cantor, tem emprego na loja dos pais, o apoio nos estudos, uma casa mais confortável, enfim, o mínimo de assistência e condições sociais que os outros personagens não têm. E talvez seja por isso que é o único que se permite sonhar mais alto. Ele é o cara que quer ser famoso.
O ator que faz o personagem do Nando reforçou isso, contando a própria história para o jornal brasileiro Estadão. Ele diz assim:
> Christian Malheiros“Fui resgatado pelo teatro. Tanto é que se e não fosse a arte na minha vida, talvez eu seria o Nando da vida real, porque o contato [com o crime] na favela é direto. Você acorda e vê o cara vendendo [droga]. Sem o teatro, eu não saberia onde estaria uma hora dessa. Tive amigos que não tiveram boas oportunidades como eu e infelizmente foram para o mundo do crime, para outros caminhos”,
Falando em transformar a vida através da arte, a série acertou muito no elenco. Além de os três personagens não serem muito conhecidos pelo público, o que deixou a cara da produção ainda mais próxima da realidade, alguns dos atores que fazem papeis de traficantes são detentos, quer dizer, presos que foram formados numa escola de teatro dentro de um presídio paulistano.
Tem uma cena que eles falam com tantas gírias do crime que até mesmo para brasileiros é complicado de entender. E aí eu entro no último ponto que eu quero abordar:
Sintonia não é a melhor série para aprender o Português Brasileiro, mas é ótima para aprender SOBRE o português brasileiro. Entender como ele pode variar! E nem precisa viajar muito. Basta se deslocar dentro de uma cidade grande, por exemplo.
Além do ponto da língua, volto a reforçar os temas sociais. Racismo, corrupção policial, ligação das igrejas evangélicas, violência contra a mulher, gravidez na adolescência e muito mais.
A forma natural como cada personagem vive mundos tão diferentes dentro do mesmo ambiente, da mesa comunidade, é a grande sacada de Sintonia. Mostra como a periferia é isolada da sociedade como um todo, mesmo que ela esteja ali, no meio da cidade, entre um bairro burguês e outro. Lugares esquecidos pelo Governo que muitas vezes funcionam com as suas próprias regras.